quinta-feira, 25 de março de 2010

Querências.




São querências. São campos onde se deita, extensões de terra onde se rola e onde se pesquisa a vida. São plagas onde se pode caminhar. Eu vi a tua imagem irisada sobre uma planície. Eu vi meus dias na querência iluminados pela mesma luz. São chapadões onde se permite a festa, autarquias onde se festeja o passamento das coisas. É um batimento pressentido, sob a superfície da terra, um esgar de rochas, de ruínas. São planaltos salpicados de crateras, são grotões esculpidos na pedra, são cavernas onde se fabrica um elixir.


As querências por onde caminhar, contigo, por onde fabricar os usos novos, por onde gotejar em ti um sumo esbranquiçado – a vida que nessas querências aflora, o vento nas folhas de uma porta, são varandas. São urnas. São estrias na pele das placas, carreiros por onde os andarilhos, trilhas de uma arcaica rota, são passagens. A querência para onde encaminho os passos, beleza dessas válvulas congestionadas com sangue, a escuridão dessas trevas, poeira desses pergaminhos.

Chagas, queimadas, fundura dessa terra sem palmeiras, planura dessa várzea – querência esquadrinhada nos mapas, saudade dessa terra. Onde os teus sabiás, onde os teus céus? Querência de águas, tuas fontes são as férteis, sãos vastos teus mananciais. No reabrir dos pagos, no refletir das sangas, das aguadas, querência de valas, pedras soltas, tropeções. Minha terra tem pedreiras duras, terra de nós que não desato, abismos que não cruzo, vossorocas.

Campeia uma querência extraviada, campeia, por detrás dos matagais, um relógio de águas, um núcleo de calor, um pomo. São hastes por onde uma seiva transita, cápsulas onde se armazena a vida. São estepes escavadas sobre o chão, revoada de um pássaro, percursos. As folhas são caducas, a relva é um espaço que se abre, macegas onde conheci teu corpo-novo, remansos onde saciei a fome. A tua querência – remoinho, viragem dessas horas, um giro que descortina a paisagem.


Nas taperas, nas ramadas, querências onde se aglutina um líquido, nos galpões onde se deita – fabricação de um ritmo, um assovio soprado, um uivo, um guincho, nos catres onde se acomoda o corpo. Querência habitada por aves de caça, os bicos recurvos, as garras, as asas aladas. E fricções, clivagens, querência de onde emerge um susto, de repente, por detrás das moitas, coração ao pulos, contração dos flancos, estertores. Teus úberes, teus turnos de agonia, mortalhas sobre ti: querência.

Sempre um corpo nas beiradas do mato, sempre um flanco – que  irrigado em caçadas, rejuntado, torto, o movimento das nádegas. Com névoa sobre a querência, peitoral de um lado, um escudo, sempre um rosto. Nos rumos, sempre um ligamento, sempre um lugar de cavalos que larga na folhagem seu cansaço, sempre um sestro – um gingado, nas querências do resto. Teu aprumo, teu gesto – são os pagos que te cobrem, são as valas que te escondem, é o barro que te amassa, é o barro.

Querência, estrada de cristais, calçamento de brilhos, cortejo de luzes, contínuo retombar de vertentes. Querência, capoeira de raios, morada de luzes, ruído das toras consumidas pelo fogo. Fumaça das postas. Querência são costados, vazantes, ipueiras. Semente das ervas que te cobrem, são os peixes nas tuas locas, é o barro fecundo de ovas, são os poços, os arroios, são as trombas d´água. O corpo, confeito de latência, estirado sobre as tuas saliências, querência, os vales onde o pensamento, liberto de peias, viaja.

Nas ilhargas – querências das chagas, formação. Escuta um chamado por detrás da malha, rompe tu mesmo o tecido de hastes. Cavalga nas escápulas, sumiço dos teus ornamentos, cavalga na válvula. De chuva na querência, quando vem o vento, resumo dessas horas, de vento na querência quando vem o tempo, cavalga. Nos costados, acha a ti mesmo soerguido, busca, a ti mesmo estatelado, querência de cacos, fuça nessa porcaria, enfia o teu tendão, maneja essa tropa enquanto é hora.

Estado de facínoras. Quebranto no chão, querência dessas horas travejadas, querência desse chão que assenta e foge, esse ar que alimenta e escapa – donde pressenti o cheiro dos teus ombros – um potro, um poço, uma porção do teu corpo assim exposta. Poesia de querências revogadas, monumento, prece, transfiguração.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Opus Magnum.





Acontece de quando em quando, em fins de tarde, que o céu da cidade fique rajado de cores. Eu estava em casa, e cortava em rodelas uma lingüiça calabresa enquanto ouvia os Concertos de Brandenburgo. Ao olhar para a janela, me chamou a atenção a súcia de paletas reunidas, a delicada desordem e o arrojo de tantas cores misturadas. Era estranhamente moderno, espantoso, agressivo.  Era aquele embarafustamento, aquela profusão. No fim, aquele exagero, aquele esbanjamento de beleza sem finalidade que a natureza às vezes teima em fabricar lá com seus meios. É impróprio tomar o céu do entardecer por uma “obra”. Obras são coisas humanas. Mas é inevitável (e divertido, enfim) pensar naquele turbilhão como uma “obra” anônima, bombástica, feita para todos e para ninguém, incrivelmente elaborada em seu mais precioso detalhe e no entanto perfeitamente livre, desarticulada. Não pude deixar de observar ainda que a “obra” era mutante e cada cinco minutos revertia em outra. “Como tudo é grande e portentoso e belo!” – algo em mim dizia. Outro algo em mim, mais sóbrio, alertava: “Não se deixe enganar, foi você mesmo, humano, quem criou a beleza. Essa obra é sua.”  As duas partes não se entenderam lá muito bem. Uma delas dizia: “Como é possível negar que aqui existe algo que pode ser chamado de “belo em si”?” A outra retrucava: “ Mas como pode ser você ingênua e ao mesmo tempo arrogante a ponto de crer que a natureza se importa com seus juízos estéticos!” A noite derramou-se, enfim. E a grande obra sem autor – ou de autor desconhecido – foi encoberta pelas sombras. Nada ficou decidido entre as partes. Mas a uniformidade  que a noite estendeu sobre o que antes era variado e confuso foi capaz de acalmar os ânimos e fazer esquecer um pouco que o mundo é essa coisa colorida e móvel, misturada e doida, exuberante e cruel.

sábado, 20 de março de 2010

Uma Estação no Inferno.


A vida é um riste.
Estamos suspensos.
Sou a frincha entre o estar e não-estar;
e no entanto estou: sou um corpo cheio de sangue,
porém calado.

Arrisca-se, no eclipse,
quando partilho de mim mesmo o cerne.
Estou atento, porém triste.
Vivo, porém ferido.
Mas me levanto, quando a noite cai,
e tento respirar.

Ninguém me sabe.
Trago a dor para a qual não existe o elixir.
Mas sorrio quando me sorriem.
E tento parecer contente.
Só me captam os que estão próximos.

E não sei caminhar,
e não sei partilhar as minhas alegrias,
e não sei viver a não ser quando tudo silencia:
quando a vida resiste, apesar de exaurida,
numa oculta, tóxica lida.

E mesmo a ti, amigo, não sei pôr em verbo
a angústia que me rói inteiro.
E mesmo a ti, irmão, não sei nomear o verme
que por dentro me carcome.

Sei que sou excesso – e dor.
Pois toda a minha alegria é tentativa de alegria.
E todo o meu alívio, esperança de alívio.
Mas vivo – e a vida em mim resiste,
como uma chama resiste frente ao vento.

E ressuscito das jornadas alquebrado,
e me recomponho em partes separadas,
e nunca estou inteiro – a não ser na Música,
(sem a qual a vida me seria um erro).

O trem no qual viajo tem uma estação no inferno.
Queres vir comigo?

domingo, 14 de março de 2010

Canção das Coisas da Terra.



repara que a ossatura das coisas nunca se deixa investigar e mesmo as tuas investidas são quimeras frente à inflexível urdidura das coisas, a cerzidura do mundo, o entrelaçado das horas – repara que dentro das rochas, repara que nas bordas úmidas do mundo escorregas tu e escorrego eu em tuas armadilhas – o mundo cresce e suga de nós a alegria, o mundo injeta em nós mais alegria para que continuemos em incessante exercício.



repara que no entretecer das horas, repara que no prosseguir do tempo tu te perdes e eu me perco em ti, emaranhado. repara nas folhagens, repara no líquido branco que o meu corpo expele, repara na pele que recobre a carne, nas veias embutidas nela, repara na teia de nervos que atravessa a carne de uma ponta a outra – repara que a nervura das coisas nunca se deixa entrever por meus olhos, por teus olhos que eu quase nunca entrevejo: os sóis de inverno, os pés de um alecrim plantados, os lapsos entre um e outro instante – repara que o teu corpo cresce, repara na vida que emana do teu corpo e repara que o teu corpo bebe da mesma fonte da qual bebe o meu corpo.



repara que a armadura do mundo, repara que a estrutura do mundo nunca se deixa alcançar senão por oculta alquimia adivinhatória – repara ainda nas pedras de opala, nas rajadas de vento, nas distâncias – repara que a distância que de ti me separa é mesquinha e ilusória – que a vida aproxima as partes apartadas, que o mundo propaga um clamor de batalha, que as válvulas do mundo trabalham – os gêiseres, a lava dos vulcões que a terra espirra, os cataclismas – repara na beleza dos cataclismas da terra, na beleza trágica dos maremotos, repara quão diminutos somos nós frente ao colapso dos ligamentos da terra, quão caricata é a minha cara e quão caricata a tua cara quando estampada na primeira página.



repara nas balas, repara nos projéteis, repara nas cápsulas, repara nas ogivas de titânio e bromo, repara em todos os elementos que compõem a terra e repara no modo como todos eles se combinam na fazedura das coisas – repara nos estames de hibisco, repara nas sépalas, repara no caule erétil que sustenta a floração das coisas, repara ainda nas inflorescências – nas formidáveis inflorescências da terra que são as grandes formações rochosas, os aparados da serra, repara como são portentosos os monumentos erguidos sobre a capa fina da terra, repara como são garbosos, como são vastos os prados, como são vastos os pampas entrecortados de coxilhas, neles se pode divisar um horizonte aberto, neles se pode pressentir a linha de curvatura da terra.



repara no imperceptível movimento da terra, repara na seqüência inabalável dos dias e das madrugadas, os dias e as madrugadas e novamente os dias e as madrugadas, repara que à vida sobrevém a morte e repara que ninguém tem primazia nesse ciclo – e que até tu com tuas maravilhas, até tu com tuas algazarras, até tu - há de liquidar-se dentro das cavidades da terra para todo o sempre.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Um Mundo Transformado.




Eu faço parte daquilo que desconheço.


(Antes de começar esse poema, eu preciso de três perdões. O primeiro, por ter que escrever em versos tão repletos do pronome “eu”. Sei que pode soar pedante, exibicionista ou egocêntrico mas, em algum momento, uma pessoa sente que deve falar de si mesma, sem pejos. Um segundo perdão quiçá me será dado, por parte daqueles que prezam a busca da verdade, por ser contraditório no que escrevo. Mas não é o humano algo de fundamentalmente contraditório? Não será o humano algo que se chama, antes de tudo, “contradição”? Discordem de mim, e eu gostaria que discordassem. Preciso de adversários. Quer ser meu adversário fraterno? Se eu tiver sorte, um terceiro perdão me derá dado pela excessiva quantidade de palavras aqui registradas. Sei que isso tem um nome nada honroso  - “verborragia”. Mas não sei fazer haicais e a concisão não é o meu forte – eu amo os fluxos. Portanto, perdoem, sejam complacentes, sejam mansos).




Eu caminho em direção ao que não se pode conhecer.
Meu cérebro trabalha num ritmo alucinatório.
Eu sou doce, dócil e auto-destrutivo.
Eu sou triste, angustiado e sozinho.
Eu uso meu corpo para experiências que são dilacerantes.
Eu me contento com pouco.
Eu nunca estou satisfeito.
Eu me excedo, mas busco a retidão e o comedimento.
Eu sou silêncio, mas todos os ruídos estão em mim.
Eu sou a incomunicabilidade.
Eu sou a dor de não conseguir chegar a ti.
Eu sou a dor de uma perda irreparável.
Eu sou a dor e não tenho esperança de alívio.
Eu trago dentro de mim a possibilidade do alívio.
Eu tenho a inquietude e pratico todos os dias um desastre.
Eu sou completamente sincero.
Eu sou uma farsa.
Eu faço parte daquilo que nunca chegarei a conhecer.


Eu acredito no emudecimento do corpo.
Eu acredito na supressão das vontades do corpo.
Eu sou um corpo sanguíneo, sou um corpo violento.
Eu sou uma coisa que clama, clama, clama.
Eu sou uma necessidade.
Eu sou uma coisa dotada de alma e pulso.
Eu sou uma coisa que pulsa.
Eu acredito na Poesia.


(A coisa que eu mais amo no mundo tem um nome bem preciso, um território bem circunscrito. Chama-se: Música).



Eu acredito na Alma.
Eu acredito na Alegria.
Eu sou a Vida e vim para trazer a Vida.
Eu sou a Dor e vim para enfrentar a Dor.
Eu sou o Horror.
Eu sou acidentado.
Eu gosto das planícies áridas.
Eu gosto do estado do Rio Grande do Sul.
Eu amo, com meu coração confuso, o estado do Rio Grande do Sul.
Eu gosto de caminhos.
Eu gosto que o meu corpo reclame.
Eu gosto que o meu corpo revele ser parte de um todo que nunca chegarei a abarcar, eu gosto de sentir que o meu corpo é uma coisa-viva.
Eu gosto de Schopenhauer.
Eu, como Schopenhauer, não acredito no amor.
Mas eu sou puro amor, puro amor desinteressado, sou aquele que transborda de amor pútrido, sou aquele que resfolega em busca de ti, aquele que ofega em direção a ti, sou aquele que jamais desiste, aquele que jamais diz não, aquele que diz Sim, aquele que deseja o Sim com todas as minadas forças.

E conheço o amor. 
Eu amo alguém. 
Com todas as minhas forças,
amo alguém com  desespero,
com fúria,
amo violentamente e para sempre.

Eu amo com tal devoção.

Eu sou fútil.
Eu sou rasteiro.
Eu sou feio e não tenho condições de alcançar a tua Glória.
Mas eu sou glorioso, sou brilhante, guardo em mim batalhões de Vontade, eu sou luminescente e ofusco tudo ao meu redor.


Eu uso palavras excessivas e não tenho a coragem de dizer a verdade.
Eu sei que a verdade é rude.
Eu escondo a verdade atrás de ornamentos e circunvoluções.


Eu sou tão pequeno e tenho tanto medo.
Eu sofro sozinho dentro do meu quarto.
Eu guardo em mim uma força capaz de derrubar os alicerces.
Mas eu sou o medo e vivo dentro de uma cápsula de medo.
Eu prefiro a mediocridade da dor ao invés da alegria difícil.
Eu acho que alegria é insuportável.
Eu acho que a felicidade é insuportável.
Eu fujo de ti a toda hora, eu corro da tua sombra, eu te busco em cada esquina, eu te busco em espeluncas, eu corro de ti, eu te busco em casas de concubinato, eu te busco nas euforia das coisas espalhadas pelo mundo.


Eu sou fraco e vulnerável.
Eu acredito numa força alheia que nos alimenta.
Eu acredito numa força-mestra.
Eu gosto de florestas, eu gosto de pântanos, eu gosto de raízes.
Eu não sou confiável.
Eu sou indeciso.
Eu sou inconstante.
Eu sou contraditório.
Eu fraquejo na hora de dizer as coisas importantes.
Eu não sei quais as coisas que são importantes.
Eu me confundo, eu esbarro, eu derrubo bandejas, estilhaço janelas, eu perturbo o sono daqueles que repousam, eu bebo demais, eu fumo demais, eu cuspo nas pessoas sem querer, eu faço barulho demais, eu estou sempre onde não deveria estar.
Ontem mesmo, eu fui ao supermercado e derrubei no azulejo branco um vidro de catchup da marca Heinz.


Eu sou inoportuno.
Eu sou indesejável.
Eu desejo, e eu desejo com tanta força, eu desejo com tanto desespero.
Eu erro, e erro feio.
Eu sou uma sede.
Não sou digno de entrar em Tua morada.
Mas dizei uma palavra e serei salvo.


Eu sou falho e provisório.
Eu sou feito de uma matéria perecível.
Eu tenho água salgada dentro dos meus globos oculares.
Eu tenho uma substância branca dentro do meu saco.




Mas tenho um infinito amor pelas coisas que transitam pela Terra, eu tenho amor pelas substâncias, pelos cães, pelos girassóis, amor pelos montes, pelos vales, eu amo o fogo que consome as achas, eu amo os troncos, as clareiras, eu amo as tardes ociosas, os insetos que pacientemente fabricam a tarde, eu amo a tarde e o conteúdo inolvidável da tarde, eu amo os jorros, as infinidades, eu amo as noites, a lua nova que revela um céu, eu amo a água e as enxurradas de água e os aluviões, amo as cachoeiras incansáveis que nunca param de nascer e de jorrar, eu amo o largo e o profundo dos rios, eu amo o ritmo monótono da água dos rios, o leito encoberto dos rios, eu amo de um amor desesperado o verde-azulado dessas águas, o trabalho contínuo dessas águas. 

Eu amo as águas mas não sei mergulhar.
Eu preciso aprender a mergulhar.
Eu preciso me deparar com o cerne, a viva euforia de um cerne.
Eu não sei compartilhar.
Eu não sei dividir.
Eu preciso tanto de ti – sejas quem for- para que contigo eu possa repartir essa alegria insustentável, para que saciados repousemos, exaustos da exasperante tarefa de gastar essa alegria, para que untados deitemos, exauridos, calejados pela lida rude de esgotar essa alegria que machuca.


  *** 


Eu sou um silêncio.
Eu sou um silêncio doloroso.
Eu sou tão inábil.
Eu sou tão canhestro.
Eu sou um fingimento.
Eu sou um aglomerado de átomos.
Eu estou vivo, mas estou sepultado.
Eu me movimento, mas num espaço exíguo.
Eu respiro, mas dentro de uma câmara.
Eu escrevo, escrevo, escrevo – como um tolo.
Eu escrevo como aquele que escreve apenas para se salvar.
Eu estou perdido.
Eu perdi meu Norte.
Eu perdi teu rastro, as tuas pegadas no barro.
 
***
 
Eu vivo no vácuo.
Eu estou despregado das coisas.
Eu não sei o que quer dizer a palavra "realidade".
Eu estou fora de tudo.
Eu não pertenço ao mundo.
Mas eu carrego dentro de mim um mundo transformado.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Édipo e a Culinária.





- Me diga, o que você fez hoje?

- Doutor, hoje fui ao mercado comprar carne moída para refogar com cebola e bastante pimenta calabresa. Não sei por quê, mas subitamente a idéia de carne moída refogada com cebola e pimenta (não qualquer pimenta, mas a calabresa) me pareceu a coisa mais desejável do mundo. Tudo acompanhado de arroz branco, banana nanica cortada em rodelas e algumas folhas de alface crespa com azeite. Ah, que refeição digna de um príncipe! Pois assim fui ao mercado, com a simplicidade de quem deseja e, sem pestanejar, estende a mão e...

-Veja bem, você fala de algo muito importante. Isso nosnotícia de algo. Se pensarmos na sua ida ao supermercado a posteriori, pode ser que a idéia de refogar carne moída com pimenta calabresa estivesse sendo gerada há dias no seu inconsciente. Quem sabe a sua espontaneidade não passe de uma ilusão?

-Mas, doutor...

- Me diga o que lhe vêm à mente quando pensa em carne moída.

-Bem, deixe-me ver. Uma vez, quando pequeno, minha avó refogava carne moída, eu toquei na panela, sofri uma queimadura na mão e ainda levei uma bronca,  e depois...

-Veja , que interessante. temos algo que pode ser pesquisado. Você fala de coisas importantes. A sua experiência com a panela e a queimadura que dela resultou sugerem que uma pulsão erótica  recalcada gera dor. Édipo. Sua avó é sua mãe. A panela é o símile da vagina. Sua mãe é a panela. Você vai em direção a ela, você a deseja. Mas o acesso a ela é negado. A queimadura na mão é a lembrança da proibição do incesto. Édipo.

-Mas será que...

- Perceba ainda que, para o seu inconsciente, cachos de banana nanica são lidos – nãosombra de dúvida - como símbolos fálicos. temos notícia de algo. O ato de comer banana corresponde à usurpação do poder paterno representado pela figura do falo. No caso da pimenta calabresa, é provável  que o ardor provocado por ela evoque em você a excitação das primeiras experiências sexuais na infância cujas lembranças foram recalcadas pelo seu superego.

- Isso quer dizer que a minha ida ao mercado...

- A sua ida ao mercado é a restituição cifrada do seu período pós-edipiano mal processado. não me ocorre nada quanto à alface crespa. Você mencionou alface crespa com azeite, não?

-Sim, sim...

- Bem, alface crespa não quer dizer nada. É apenas alface. (...) Se bem que, por outro lado, veja , temos algo. Algo que nos dá uma notícia. O ato de mastigar folhas talvez simbolize um retorno a uma experiência xamânica, vital, a um contato com a terra que tem ressonâncias uterinas. Comer alface é sinal do seu desejo de voltar ao útero, compreende? Mas o retorno ao útero é proibido pela imagem da panela/vagina processada como tabu após a experiência traumática. Além disso, temos as bananas fazendo o papel do falo... deixe-me ver... a pimenta como símile da sexualidade infantil... algo ainda está faltando. Você se lembra se a sua avó usou louro na receita?

- Mas doutor, como vou saber...

- Não importa, ela provavelmente usou louro. Avós usam louro na comida.

- E o que isso tem a ver com...

- Tudo a ver, meu caro, tudo a ver. Veja , na Grécia Antiga, as coroas confeccionadas com ramos de louro eram o símbolo da vitória para os atletas e heróis nacionais. Esse costume também foi herdado em Roma na época dos Césares. Por isso o termo laureado deriva justamente do gênero Laurus. Essas informações estão guardadas no seu inconsciente. O aroma de louro na cozinha da sua avó representa – advinhe quem? – o seu pai. Na disputa pela sua mãe, o seu pai foi o laureado. A vitória é dele, o que lhe causa asco e revolta. Esses sentimentos intensos recalcados retornam sob a forma de angústia, o que explica as suas tonturas e frequentes crises de pânico.

- Doutor, realmente, eu não acho que...

- Encerramos por hoje, sim? Espero você na próxima semana.

O Dia da Salamandra.



 




De onde aparece a salamandra, aparece também Dona Edite, revestida em seu traje radioativo especial. Dona Judite, sua amiga, é uma avestruz que se alimenta de hormônios. Com as mãos dadas e costuradas, Judite e Edite seguem, aos trancos, rumo ao Estreito de Bósforo. Judite tem pés de pato. Edite não usa sapatos. Ambas gostam de um bom grelhado, abrem zíperes com destreza e sabem compor serenatas de amor. O marido de Dona Judite chama-se Cláudio e é um ferro de passar roupa. Cláudio tem passado os últimos dias com enxaqueca. Edite aconselha cuidados. Amiga de todos é Dona Estratosfera, cujo apelido é Simônides. Hiper-aberta a novos desafios, Simônides pratica surf aéreo e visita casas de swing. Boas expectativas para dona Estratsofera, que um dia desses convenceu Judite a ir a uma dessas casas. Num dos quartos estavam cinco mulheres, quatro homens, uma antiga imagem de São Mateus, padroeiro dos pedregulhos e um pênis de borracha. Na mesma hora em que viu a foto do pedregulho, Judite teve uma ereção. Humberto também é amigo dessa turma. Ele é uma janela veneziana, se bem que sua armação tenha sido toda forjada em Três Corações. Horácio é um tubo por onde Dona Edite avista a arrebentação do mar. Por trás do azul mais azul vive Décio, um cavalo-marinho com quem Edite e Judite discutem, fumam e bebem café nas tardes de novembro. Judite gosta de coador de papel. Edite prefere coador de pano. Assim, cada qual faz seu café. Estratosfera chega para dar um oi. Traz a cabeça perfurada de balas. Um pouco do cérebro dela pinga no café mas Judite diz – não faz mal, assim é mais gostoso! Para completar falta mencionar aqui o ajudante de Décio. Chama-se Bartolomeu. Profissão: escafandrista. Vive sem camisa pela casa e coçando o saco, lançando para Judite olhares de lascívia e para Edite olhares de desprezo. Na sala da casa, a samambaia é chamada de Sileno. Agora faz silêncio. Simônides cochila no divã. Uma brisa tão leve chega a soprar, sem ruído. É hora de ver televisão.

A Força do Sábado.




 
"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! (...) E tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!"

Nietzsche*

Hoje é um sábado tão forte que todas as coisas estão vibrando numa freqüência mais alta. Tão forte e luminoso é o sábado, pois há uma luz incandescente que fecunda o dia. Tão forte e majestoso esse sábado em seu derramar-se contínuo. É eternamente novo e forte e belo esse sábado, porque pousa agora sobre o mundo sua asa luminosa, porque é voraz e porque algo em mim que esteve encerrado quer agora transbordar e nascer. Hoje é um sábado tão forte que os espíritos que me rondam resolveram dançar no jardim. E são risonhos em sua glória esses espíritos do sábado e são infantis e graciosos quando dançam e são generosos quando me apontam o sábado, com o dedo brincalhão: “- Olha, vive o sábado, este sol que sobre o teu sábado brilha, aproveita-o, bebe a luz do sol desse sábado e preenche teu coração com a vida mais pura que do teu sábado jorra em borbotões!” Hoje é um sábado tão forte que nenhuma palavra pode conter sua desmesura, é um sábado tão vívido que nenhuma teia de discurso pode circunscrevê-lo, nãonada que possa infligir a esse sábado o menor reparo, nãonada que possa corrigi-lo, nada que possa restringir a amplitude desse sábado. O sábado não aceita esquemas. Porque ele é tão forte e tão belo e poderoso em seu vir-a-ser que nãonada que nele queira ser corrigido, nada nele a ser justificado, nãonada nesse sábado que queira ser alterado, não há nenhuma força capaz de tornar opaco seu brilho, nenhuma jaula capaz de conter sua alegria furiosa, nenhum fechar de olhos, nenhum cerrar de cortinas, nenhum tampão ou alçapão capaz de ocultar ou renegar o júbilo que nele e através dele se sustenta. Com uma gratidão tamanha que me invade o peito, de poder participar da festa forte desse sábado, ter pulmões pra receber uma lufada de vento, ter olhos sensíveis à luz e ter ouvidos para ouvir a músicaque é com badulaques e arabescos e cheiro de grama recém-cortada que o sábado abre comportas, mais a saliva grossa de um cão sobre o piso da varanda, mais as mandalas de vidro que giram e mais a luz que atravessa as janelas da casa e as mandalas, são essas e todas as outras coisas que compõem o sábado e é com elas que eu danço e envio em direção ao sábadoem todas as direções - um hino de louvor

Referência da epígrafe: NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Aforismo 276, p. 187.