domingo, 31 de janeiro de 2010

O Canto em Exercício.



  


Vias, canais, montes de terra, namorados, costa do marfim, seixos ao redor da Terra, viagens, trilhas por onde se caminha, jaulas, circo de elefantes e serpentes, língua das coisas, mundo, bagagem que as coisas trazem, infinita bruxaria do verão que sobe e desponta com seu sol.


A necessidade de um hino em direção às coisas que compõem o mundo tão diverso. Como abarcar num só hino todas as ofegantes coisas? Sinalizar o mundo, cifrar com palavras as coisas do mundo já cifrado – recifrar. Provar o pão e dele extrair uma palavra. Expôr-se ao sol e dele fabricar um ritmo.


Solares, as coisas revoam, mas revoam indiferentes, na alegria do que revoa sem saber qual a lufada que iniciou seu revôo, revoada. Ou o deixar-se estar das coisas, seu ficar-ali, a bizarra estaticidade das pedras, o amontoar-se dos grãos, o acumular-se da impaciência nos corpos, o correr de um líquido abundante – ou mesmo o silêncio.


Tarântulas guiam um corpo, funeral de aranhas, trouxa de trapos, destino. Quem põe dentro do corpo essa música? Indaga, que ao redor de ti tudo é pergunta. Duvida, que sobre ti as coisas se chocam e nada indica que se choquem com cuidado, mas se chocam rudes, duras, sem delicadeza. E tu mesmo te chocas, sem saber, com as coisas do mundo.


Tu, que com tuas garras me adivinhaste antes que eu de ti recebesse uma notícia. Tu, teus tendões, teu vasos, o líquido dos teus olhos, teus artelhos. Na orquestra, as coisas renunciam a permanecerem coisas, mas ascendem, brincam, aparecem sob  renovada luz. Eu ouço com cuidado a tua música.


Moinho, cisne, aparência do mundo, milharais, trigais do mundo que sucedem as folhagens inumeráveis do mundo. Aparição de um rastro sobre as enseadas, cortinas que ocultam teu corpo, música ferrenha. Estou ali, onde estás. Os incêndios são muitos no país. Gostaria que viesses, manso, na tarde com sombreros.


Já que estamos sós, permaneçamos, como quietos animais no campo permanecem. Já que estamos cegos, avancemos, permaneçamos mudos, tal como cavalos no campo permanecem mudos quando amanhece. Nada aqui nos acalenta. Acalentemos, pois, um ao outro.


O hino está fragmentado. As coisas do mundo são as mais diversas. Antes condensa o teu mundo, depois canta. Pois o canto, quando o mundo é vário, é um canto vário, sem intérprete. Como construir um mundo? O canto obscuro é um exercício, o mundo mesmo parece então um exercício, um ensaio. Quando é que o mundo começa? Disciplina o canto, para que ele crie os músculos. Pois o mundo não se deixa abarcar por canto frouxo, ele exige vigor. Buca o ritmo propulsivo, viril. Pois no canto viril o mundo abre as variadas comportas, desce, aceita, permanece.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A Vida em Janeiro.



 

A vida transcorre: pois já é janeiro. É no mês de janeiro que o mundo abre as tramas, que os rios desembocam em outros rios mais largos, que os frutos aparecem maduros e sumarentos nos galhos. Janeiro é o mês perfeito para existir. Já que as nuvens passeiam como lentas caravanas no céu da cidade. E o calor faz com que as pessoas suem e sorriam, extasiadas de tanto calor vivo. É quase impossível, durante a tarde, caminhar pela cidade sem ser atingido pela impertinência que a vida  adquire em janeiro. O universo é violento. Os corpos são objetos maleáveis, os corpos humanos são objetos moventes, que se quebram com facilidade, a natureza é alegremente indiferente ao drama humano. Pois todos os telejornais noticiam o grande terremoto no Haiti. E é janeiro, faz calor, o que torna tudo ainda mais grave e perigoso. O sangue derramado no Haiti tinge janeiro de vermelho-escuro. E a vida desabrocha, senhora, no meio dos trabalhos da morte – é assim que janeiro exige. As flores exalam a obscenidade de um perfume. Os animais estão acesos, mariposas entram pela janela do quarto e se debatem pelos cantos do apartamento. Não há nada que se possa fazer para salvá-las. Pois há qualquer coisa em janeiro que é de uma crueldade suave. Tudo é delicado e inexorável. Janeiro é insuportável. As coisa derretem ao serem tocadas. Outras coisas acordam, eretas, em janeiro, quando as tocamos. A multidão de corpos na rua ou dentro das casas, transpirando em cômodos mal arejados, desprendendo seus odores, suando nas axilas e no sexo, toda essa grande massa viva turbilhonando nas avenidas, faminta por mais vida,  tudo isso é grande demais e assusta. Como é que janeiro comporta essa carnificina? Pois no Haiti, quando pesadas lajes de concreto desabaram, foi a vez de corpos tão frágeis entrarem na chacina, desfigurados, entraram com espanto no cerne mesmo daquilo que janeiro é e espalha: força, desmembramento, cordão de coisas, vertigem.






E a vida, portanto, como pequeno fio entre as escarpas de janeiro pendendo, ou esticada entre tendões dos pés, ardendo entre as flores, parceira das favas, os pomos jungidos – janeiro impera. E quando as talas suspensas rebentarem – se em janeiro morrermos – o mar turbilhonado dança, a forma dos seixos se arredonda, as fatias do corpo recrudescem e toda a complicada maquinaria da vida respira. É alto o posto que em janeiro ocupamos, como corpos, como recipientes, como estruturas sobre o chão erguidas – é alta tarefa a de em janeiro sugar a brisa, em janeiro mover-se em galpões incendiados, deslizamentos de terra. Ou respirar em janeiro o cheiro que a urina degradada nos banheiros exala. Ou escorregar por alçapões, em janeiro, em direção às noites de suor viscoso, às horas longas da insônia, aos portos abarrotados de carne entrevistos em sonho. Como janeiro acende os campos, em sonho navegar os campos. Como janeiro ejeta de seu núcleo quente as esguichadas, chafurdar na massa pegajosa e percorrer as teias que janeiro tece. As folhagens, quando de janeiro as favas, os pomos, a impaciência dos frutos. Agonia, janeiro repete uma prece – desertos, vagalhões, passagem.