segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Canção de Morte





A morte é a possibilidade da impossibilidade
de toda relação, de todo existir.
Martin Heidegger, Sein und Zeit, af. 52

Mergulho na morte de cabeça baixa, estupidamente,
sem a observar ou reconhecer, como se me precipitasse num
abismo mudo e obscuro que me engolisse repentinamente
e se apossasse de mim num instante com um
sono pesado, repleto de insipidez e indolência.

Michel de Montaigne, Os Ensaios, III, 9
                                                                                      
Exordiu

De onde vem o verbo, vem o artifício, de onde
vem o verso, vem com ele o júbilo e o sacrifício
de sobre a morte compor um mais ou menos
concertado conjunto de vocábulos, estes, que
por exatos que pareçam, não passam de
uns toscos artefatos, incapazes por si mesmos
de desvelar o que seja a morte, não tanto por
razão de própria e intrínseca imprecisão,
mas pela humana incapacidade de sobre o
tema em questão estabelecer qualquer conhecimento
mínimo, razão pela qual não passaria de um
embuste se declarasse o poeta ser este um “poema
sobre a morte”, como, se da morte nada se sabe,
mais sensata é a asserção que diz ser este um
“poema sobre as muitas e variadas reações que
nos causa o fato sabermo-nos mortais”,
isso sim seria mais adequado. Donde advém
o fato de que sobre a morte mesma não seja
possível escrever nada, pode-se apenas tratar
dela, digamos, indiretamente, seja recorrendo
a imagens e metáforas, seja inventando cenas
e situações nas quais ela esteja presente, porém
não como protagonista, mas como mero fator que
desencadeia uma série de ideias, sensações e
associações, vale dizer que um suposto poema
sobre a morte é sempre camufladamente um
poema sobre a vida em face da morte.
Dito isso, apressemo-nos em iniciar o poema,
este, que curiosamente intenta investigar
um objeto sobre o qual o poeta nada sabe,
como ousa ele com tal presunção invadir
esse terreno ao mesmo tempo sombrio e fascinante
que é o da morte, totalmente desconhecido,
mais ainda assim atraente, é realmente
um desplante o fato de os poetas andarem
por aí a versejar sobre o que não sabem e
provavelmente nunca virão a saber, mas o que
se há de fazer, é característico da poesia,
isso de querer exprimir o inexprimível, explicar
o inexplicável, conhecer o incognoscível.

I

De onde vem o vórtice, consumo de outros
vórtices iguais ao vosso, de onde luze a centelha,
sumário de outras centelhas que são vossas,
bem onde fica o sacrário, seja a vida que vos alenta,
seja o sepulcrário, ali onde a morte oculta seus
destroços, que sob o consumado lume dantes vosso
repousa uma laje, que o que dantes girou vivescente
sobre as estepes do mundo, hoje jaz emparedado,
já não oscila, já não arde, por que artes hei eu
de vos rever um dia, alvo, luzente, coroado,
se eu mesmo hei de seguir o atalho cujo destino
repousa sobre a mesma laje, como hei eu de vos
reter em meus braços, se os meus alicerces são
bem como os vossos perecíveis, por que artes
hei eu de vos reencontrar, quem sabe em outro
reino, outro hemisfério, ali onde aéreos, delicados,
vou convosco, lado a lado, ali onde de braços dados
sob um verdescente prado caminhemos, mas como,
se nem o meu corpo, nem o vosso, e se nem o meu
rosto, nem o vosso hão de ultrapassar incólumes
os umbrais da noite, antes – oh despautério,
oh invólucro – turbilhonados sob um mar de andrajos,
lágrimas, flores murchas, cessarão ambos de
existir como rosto e corpo, passarão a existir
como despojos, e logo como pó, e logo como nada.

II

Rebenta, oh saliente pomo, refulgiste,
agora, desfalcado do luzeiro que era teu,
 emudeço lívido, e vou reabrindo as
comportas onde guardei, plasmado,
um esboço dos teus olhos.
Rebenta, oh desvanescente, oh desenfeixado
talhe, aonde foste, que o meu desalento
apalpa os ares e tudo o que logra alcançar
é um vácuo frígido – pois da voz que outrora
altissonante, silêncio, do corpo antes
resplendente, escombros, do halo de calor
um sopro gélido, do dorso antes ondulante,
do estofo carnoso, mais escombros, dos pés
que dantes lépidos, hoje imóveis e unidos,
das mãos dantes gesticulantes, hoje cruzadas,
insensíveis, do ventre outrora torneado,
desventrado hoje, dantes tocado por meus lábios,
do sexo, rosado dantes, dantes delicado,
apenas um fiapo bafiento, do rosto antes
numinoso, uma desfigurada máscara,
esta, que mortuária ou mortuória, extinta
a força que lhe geria os músculos, conserva
agora uma expressão sempre a mesma,
ainda que inexpressiva e dura, após o que,
desfeita a musculatura, expressão nenhuma
há de restar, a não ser que algum venha
alegar ser expressivo o crânio humano,
o vazio das órbitas, a ausência de lábios,
e justamente por isso a ausência de sorriso,
não por acaso a tradição sugere ser justamente
esse o rosto da morte, porém nisso não nos
fiemos, que a morte não tem rosto, portanto
contentemo-nos com a sua espectral imaterialidade,
porém digamos desde já que, malgrado nosso,
imaterialidade nada tem que ver com inexistência,
ainda que seja óbvia a informação, não custa
aqui deixá-la registrada, pois que não raro
são as maiores obviedades as que nos escapam,
veja-se o caso da morte, que de tão óbvia,
 e talvez nada exista sobre a Terra de mais óbvio,
chega a ser – inacreditável.

Rebenta, oh sepultante, que da carícia
há de emergir a fresta, de onde frondoso
brota o valeroso (ou volumoso) espécime,
em festa pois rebenta, oh despojada réstia
do que foste, oh desconcertada coleção
de ossos, que do alteroso porte que antes
exibiste, do desassombrado e opulento
e forte há de emergir o assombro, o espavento,
o espanto com que frente à morte nos
apresentamos, é o moroso drapejar de
um trapo, o rumorejar dos galhos quando
o vento, à meia-noite, quando emparelhado em
mim teu cetinoso túnel, que resfolegante
esfregas sobre a minha a tua fome, que o
vento continua a escarnecer de nós.

Rebenta, oh desgraciosa hetera, oh fera
descarnada, fendeste com teus punhos
a imaculada esfera que contém o instante
quando o instante pára, e o sangue jorra
das veias terrenas, das veias profanas,
é o desfalecente trotear de um pégaso,
quando, sem que saibas, os cascos deixam
de tocar o chão e já então encavalado
voejas sobre as pradarias. Rebenta, megera,
que o teu negaceio fere a prestimosa célula,
e o teu enxame obnubila o lume, ou será
o cardume de vespas bipartidas, é costume
destes sítios recobrir de estrume o nome da
morte, para que ninguém a veja, para que
ninguém a saiba exercitante e hábil
e sobretudo para que ninguém saia por aí a
indagar seus pares o que é que entendem
por morte, mas como, se dela não há tanto
o que entender, há mais que suportar o
olhar expectante que ela nos dirige,
como se a dizer “sois todos meus”.

Pois rebenta, oh delgadeza do instante,
que em ti o gesto e a delicadeza são um e o mesmo,
e a brandura sem a carícia não subsiste,
assim como da morte participa o espanto,
e como não resistes sem teu sestro,
não existe sem o mesmo sestro teu encanto.
Pois rebenta, oh clamor inútil, oh indiferença de
tudo, que depois de partires, as folhas hão de
se agitar da mesma forma sob o vento,
e o mar há de continuar a lançar vagas contra
as rochas mudas, e o sol há de espalhar
sobre o gramado a mesma luz, e até mesmo
aqueles que conheceste e amaste hão de voltar
às suas vidas e amarão novamente, sendo
tu apenas uma lembrança pálida arquivada
nos alçapões da memória. E quando estes
que conheceste e amaste partirem por sua vez,
e até mesmo em tua lápide não se puder
ler teu nome, e as gerações se seguirem,
quando todo e qualquer traço que deixaste
no mundo for apagado, quando não restar
nem mesmo o mínimo resquício do que foste,
aí então será a morte radical e completa,
o cáustico aniquilamento do teu nome e do teu ser,
a erradicação de qualquer vestígio teu,
aí sim terás morrido inteiramente,
aí sim sim estarás profunda e irremediavelmente
morto.

Rebenta, oh esfaimada partição de um
áster, fundação das levas alquebradas
de argonautas, que na extrema-unção
hás tu de recolher o derramado éter,
que mesmo no silêncio a morte indaga,
que mesmo nas alturas crísticas do nada
hei eu de forcejar a entrada no famigerado
reino, o estéril continente de onde nenhum
vulto volta a emergir, que uma vez teus
olhos submersos, que uma vez dilacerado
o verso e o anverso dos teus ornamentos,
que uma vez desenfeixado o texto, a tessitura,
o cordame o elo, o feixe, a contextura,
jamais hão de novamente enfeixar-se,
que no dia em que solene tu partires, parto
eu em teu encalço, vasculho a rosa dos ventos
em busca de um vestígio teu ou do teu rastro,
exumo o teu fenecente cadáver e arranco
de um mar de andrajos, trastes, flores mortas
o teu corpo desmaiado – oh canção, oh severa
degeneração do teu invólucro, oh maldita
desintegração do que um dia foste e
já não és.

III

Que venha pois a morte enquanto a tarde,
enquanto o talho ainda arde, o corte
irrecorrível que ela abre em nós,
abre em vós, enquanto a parte mais macia
ainda recrudesce, a simpatia com que
hei eu de receber-te, quando esquálida
aproximar-te, que venha pois a morte
maiúscula arrebentar o que restar
de mim, quando já não houver cura
e a cesura for irrevocável, venha,
vem enquanto ainda estiver quente
a cozedura e luzir ainda a vida,
que para morrer basta estar vivo,
é o que se diz, mas quantos são os que
já mortos logram ainda morrer novamente.
Pois que venha a morte de penachos, arcabuzes,
que venha de taileur, se dama for, ou se for varão
que venha nu, permita Deus, e que traga já
a gadanha em riste, e que não venha triste,
mas que traga chistes, cançonetas, que venha
com sorrisos, piscadelas, para que me encontre
a hora extrema em meio ao mais gozado
flerte, não seria isso divertido, mas talvez
seja pedir demais de quem ainda por aí
tão atarefada. Em todo caso, que venha
ao menos com alguma flor no bolso da
mortalha, onde é que já se viu mortalha
com bolso, que venha então com a dita flor
segura pelos dentes, mas que venha excelsa,
como soem ser as altas entidades, excelentes
no que fazem, e competentíssimas.
Que venha pois a morte paramentada de
turbantes, cachecóis, que venha com seus atavios
recolher de mim o que já desataviado for,
que venha aromática, de menta e alcaçuz,
e que espalhe pelos vãos seus mortuórios ares,
que venha em andar pausado, e que uma fanfarra
surda lhe prenuncie a entrada, que venha
lenta, dadivosa, que se aproxime do meu
catre como se aproxima um velho cão,
e que arrebate meu silente coração com seus
dedos esponjosos, que acoberte meu descrente
coração com o inconsútil canto de suas muitas
e variadas melopeias, que venha terna e elástica,
quem sabe ao crepúsculo, e que me encontre
sereno a meditar num canto sem mover um
músculo que seja, a não ser aquele já mencionado,
do meu jacente coração de carne. Que venha
pois a morte, é vão que continuemos assim a
evocá-la, pois virá mesmo que não a evoquemos,
mas talvez, evocada, venha mais lânguida,
mais amaciada, não seja aquela dura cesura
que de supetão nos rompe as ligaduras e nos
enegrece a vista, mas que talvez, comovida pela
doçura do evocativo canto, venha embaciada,
translúcida, e gradativa nos extingua o lume,
de modo que nos seja doce a agonia e vagaroso
o ultrapassar dos umbrais.

IV

(Canção de maldizer a morte)

Vem, alada prostituta, vaca amortalhada
de três chifres, vem com teus corcéis, teus
desatinos, vem cadela consagrada consumir
o fogo que restar de mim, vem caolha,
megera, vem camélia pútrida arrancar
de mim enfim o último estertor, vem maldita,
desgraçada fera, vem com a gadanha
cega e serrilhada com que decepas a
vida, vem maltrapilha e desgrenhada
macular co´a tua imunda foice o frágil
território que teimo em defender com as garras,
mas em vão, que a tua sombra virulenta
há de extinguir a réstia de uma obstinada
flama que teimo em proteger com as mãos,
mas vem, puta desalmada, que com todos te
deitas, mas nenhum dos teus clientes logra despertar,
vem sonsa, insidiosa, pestilenta besta,
com teus cascos bipartidos, com teu rabo de
pantera, com teus olhos mortos e vazios,
vem vagabunda esquálida arregaçar o que
restar de mim, essa canção de maldizer,
confessemos, é só um hino de louvor
bem disfarçado, pois que no fundo te louvamos,
oh diaba encalacrada, além disso é de conhecimento
geral que ódio é tão somente amor tornado putrefato
pelo veneno da mágoa. Donde se conclui que a
vadia desdentada contra a qual até aqui viemos
lançando os piores insultos é no fundo por nós
adorada, que a leitoa desbeiçada sobre a qual
até aqui viemos fustigando com a farpa pontiaguda
do nosso verbo não merece tamanhos impropérios,
fiquemos cientes de que a velha depravada
que hoje maldizemos, amanhã há de nos acolher
em seus braços, e será tarefa nossa suportar
o seu bafo pestilento, portanto deixemos de
injuriar nossa futura concubina e nos conformemos
em aceitar, com heroica ou estoica resistência,
a antevisão de seus beijos pegajosos,
seus seios emurchecidos, seus pelos encravados,
assim como as inevitáveis pelancas que lhe
adornam o dorso, o ventre, as nádegas e as pernas.

V

Ônix, de onde ostentas, lúbrico, o sílex,
o silêncio, o túrgido redespertar de
um antúrio, que do lodo recolheste
o brilho, do estofo carnoso o índex
de mais e mais contendas, que do jorro
alvissareiro brota o látex de mais-silêncio,
e escuro o continente imerge sob
a pedraria, sem que o espasmo,
o astro de cansaço que ontem entreviste,
a haste transformada em susto,
rebrilhas pelos escarcéus feito um
murmúrio, que do lado mais exposto
trovejas a ira e as tuas mãos no barro
remarcam a trilha, a armadilha em que
tu mesmo te enfiaste, a inominável ilha
em que te encontras condenado ao
ostracismo eterno.

Máximo, o trespasse de um extenso
batalhão de astros, o exício de um
sátiro, quando o fáustico, se bem que
indolente estásimo logra desenfastiar
o público, e a catástrofe coincide
com a anagnósis. Sísmico, o desandar
de um reticente oráculo, quando
a pitonisa permanece estática,
e os gases que escapam pelas rachadura
do chão, e o líquido negro que desce
aos lençóis d´água, e os arrebóis da
cor da carne, a cor da parte mais
avermelhada do céu. Que a morte,
a espezinhada sorte que nos coube,
a fadiga de tão brevemente enlaçar-te,
para logo mais perder-te, o mais indicado
é que finalizemos logo esse poema,
que a cada passo vai tomando mais estranhos
ares, cansou-se o poeta de versejar
sobre a morte, finalizemos pois antes que
a mesma morte surpreenda o poeta
no meio de um verso, era o que faltava,
um poema incompleto. Pois que agora
mesmo um ligeiro calafrio percorre a
espinha do poeta, falta-lhe o ar,
um leve latejar nas têmporas, não deve ser nada,
deve ser efeito de ficar tanto tempo a
lidar com isso de mortos e morte, vamos
logo ao desfecho, que é o que importa:

“A forração almofadada de um estreito
claustro, vulgo caixão, neste que hão de
vos depôr um dia, após o que cobrir-vos-ão
de crisântemos, de modo que só a vossa
face enrijecida e pálida apareça,
e nas narinas hão de meter o algodão,
para que dali não escorr...




texto e foto | Ygor Raduy















domingo, 6 de novembro de 2016

Um Réquiem.




Mas como persistir na poesia
se já não há quem ouça o canto?
E se nem mesmo sabes o que cantar
e se o canto te sai torto e amargo?
E se nem te lembras mais o que é “poesia”,
se o próprio mundo já não quer saber,
se as coisas do mundo se recusam?

Não te cansas nunca de cantar sem ser ouvido?
Não te ressentes nunca da aridez do entorno?
Até quando serás imune à indiferença?
Onde teu orgulho, tua ira, teu desprezo?
Onde a tua impaciência?
Serás tu um espantalho ou tens sangue?

E talvez já não exista razão para cantar.
E talvez já não haja o que cantar.
E talvez já nem haja mais aquilo que se chama “canto”.

(E certamente virão a ti outros poetas,
se ainda houver algum que conheças,
alguns virão cegos, outros em frangalhos,
virão como fantasmas, com mortalhas,
e tentarão te persuadir, te alegrar,
combaterão com eloquência o teu fastio,
dizendo que tens que prosseguir,
que é preciso que sejas forte,
que a poesia deve resistir,
que a poesia é o que dá sentido,
que desistir da poesia é desistir da vida.
E te verás entediado em meio deles.
E talvez diga a eles algumas palavras amargas,
ou ofereça a eles o teu melhor sarcasmo.
Pois embora tal discurso seja belo
e embora concordes com o que dizem,
tu sabes , como eles mesmo o sabem,
que nada daquilo faz sentido algum,
a não ser dentro daquele estrito círculo.)

O peso das coisas, as lufadas da manhã,
as dores do corpo e as saliências do corpo:
serão ainda objeto da poesia?
E se não houver mais objeto no mundo
e à poesia nada mais reste senão cantar sobre si mesma,
e se não houver mais objeto possível senão o próprio canto?
E se a dor, a época sombria, os desmandos,
o repuxo do tempo, o ir-e-vir das coisas,
e se nada disso puder volver-se em poesia?
Ou pior: se o mundo se recusar, afastando
com um gesto rude o verso, se o verso for
rompido, violentado ou pior – ignorado, suspenso?

Canta o silêncio.
Canta a sombra.
Canta o nada, se for preciso.

Pois para ti, infame, já não é possível parar de cantar.
Achas que pode decidir sobre as coisas da poesia?
É antes, a poesia que decide sobre ti: tu és apenas um servo.
Então, continuarás cantando.
Não porque queiras ou porque tenhas assim decidido.
Algo que não conheces decidiu por ti.

Porém, não sejas ingênuo;
poupa-te a ti mesmo de ser tolo
e reconhece o óbvio e explícito:
o mundo em que vives já não quer teu canto,
o mundo já nem sabe do que te ocupas,
o mundo tem em vista outros interesses,
dos mais úteis, mais rentáveis.
E estás condenado ao desprezo
e o teu canto não será ouvido
e tudo o que fizeres – todo teu labor,
todo o teu sangue, toda a alegria do
teu canto e toda dor que ali condensas,
e o sumo das coisas que ali injetas,
e o giro de tudo que ali cristalizas
– será tudo em vão.

E se te jogares de um alto edifício
não sentirão falta de ti nem do canto.
Ou se te retirares para longe
ninguém perceberá a tua ausência.
Pois o teu canto precioso
será desmantelado pelo vento, pelo tempo.

E o teu corpo será corroído.
E assim como acontece a tudo e todos,
tu serás sugado pelo funil do esquecimento,
tu e o teu canto, ambos já em pedaços.

E só quando houver cessado o teu canto
e embora já nada sintas,
e embora já nem mesmo existas
– só, ali, então, conhecerás - paz.


segunda-feira, 6 de junho de 2016

O Relatório do Ovo.



O Relatório do Ovo

Ao ovo, dedico a nação chinesa.
Clarice Lispector. “O ovo e a galinha”

I

         Aqui estamos. Nós e o ovo. O que é o ovo? Para essa pergunta não há resposta. Este é o relatório do ovo. Eu sou um agente. Minha tarefa é escrever relatórios. Sobre o ovo? Talvez. Este relatório está dividido em dez partes. Porque dez é o número do ovo. Cada parte fala de um aspecto do ovo ou de alguma situação da qual o ovo foi protagonista. O relatório foi escrito em linguagem simples, sem floreios. Exceto talvez a décima e última seção, que é a transcrição do meu delírio. Por alguma razão obscura, o ovo sempre conduz ao delírio e à embriaguez. Mas uma embriaguez rigorosamente sóbria. A sobriedade delirante é um dos principais atributos do ovo.
         Por que eu escrevi este relatório? Não sei. “Não sei” é sempre a melhor resposta. É a resposta do ovo. A pessoa que diz “não sei” está aberta para a vida. É por isso que não saber do ovo é a melhor forma de saber dele. Quem diz que entende o ovo está a milhões de anos-luz de entendê-lo. Portanto, este relatório não é uma tentativa de entender o ovo. Pelo contrário, é uma tentativa de não entendê-lo e assim adquirir algum conhecimento a respeito dele.
         E escrever sobre o ovo tem muito a ver com o processo de ir entendendo cada vez menos. Eu escrevi tanto sobre o ovo que meu entendimento sobre ele reduziu-se a zero. Zero é o número místico. Quando uma pessoa chega ao zero, atingiu a plenitude. O intuito deste relatório é fazer com que cada pessoa encontre seu próprio caminho em direção ao zero. Porque há muitos caminhos. Um deles é o ovo. Através do ovo, uma pessoa, caso esteja realmente empenhada, pode alcançar o zero em um tempo relativamente curto.
         Isto não quer dizer que o ovo seja apenas um meio pelo qual se chega a alguma outra coisa. E o ovo também não é um fim, não é um objeto a ser perseguido. É inútil perseguir ovo. Ele sempre encontra maneiras de escapar ao perseguidor. E além disso ele já está lá: então para quê persegui-lo? Os que perseguem o ovo são tolos. Aquele que deixou de persegui-lo é sábio.
         O ovo não é verídico. Mas ele é verdadeiro. Existe uma enorme diferença entre verdade e veracidade. Uma fato verídico acontece fora de você. É algo verificável que pertence ao mundo externo. A verdade acontece por dentro. Ela é um processo interno ao qual só você tem acesso. A verdade é uma experiência interior. Sei que isso que estou dizendo parece clichê de autoajuda, mas preciso continuar assim mesmo.
         Você não pode transmitir a verdade a ninguém. Cada pessoa tem o seu processo exclusivo. E a verdade não é algo que se atinge ao fim do processo. A verdade é o próprio processo em mutação contínua. A verdade, como se diz na filosofia, é um “devir”, ou seja, algo que está em perpétua mudança e transformação. Aqueles que creem em uma verdade estática e definitiva nunca conseguem sair da superfície. Aqueles que afirmam que estão dizendo a verdade são mentirosos. Não há nada mais mentiroso do que dizer a verdade. Porque a verdade não é dizível. Algo que está em constante mudança não pode ser traduzido em linguagem comum. Por isso, somente a Poesia, que é uma forma muito especial e mágica de linguagem, tem acesso a certas parcelas sempre limitadas da verdade. A ligação entre Poesia e magia é tão antiga quanto o ser humano.
         Estou falado sobre a verdade e parece que me esqueci do ovo. Mas não. Quando aparentemente me esqueço do ovo e começo a falar sobre outra coisa, aí sim é que realmente estou falando dele. E vice-versa: quando estou falando diretamente do ovo é porque na realidade estou falando sobre alguma coisa completamente diferente.
         Portanto, caro leitor, esteja alerta: sempre que eu me referir ao ovo durante este relatório, saiba que não é a ele que estou me referindo. Embora muitas vezes pareça que estou realmente falando do ovo, não se deixe enganar. Se eu falar do ovo, é porque o ovo não está ali. Agora, se eu falar sobre coisas que nada têm a ver com o ovo, aí sim estou falando dele. Porque o ovo só é acessível de forma indireta. Para captar os sinais vibratórios do ovo preciso ser oblíquo e dissimulado.
         O ovo é como um animal arisco. Se eu me aproximar dele sem cuidado, ele escapa no mesmo instante. Só se aproxima do ovo quem é extremamente delicado. Quem tem a paciência e a perspicácia de fazer inúmeros rodeios e circunvoluções. Se eu me mover em linha reta em direção ao ovo, não vou conseguir nada. Para chegar ao ovo, preciso ser flexível. Preciso que meu discurso seja uma sucessão de curvas suaves e espiraladas que lentamente vão traçando ao redor do ovo uns cautelosos arabescos.
         Todas essas são informações básicas sobre o ovo. Para um agente, tudo o que acabo de relatar é muito óbvio. Mas para quem nunca teve uma experiência com o ovo, os fatos referidos acima podem parecer loucura. E de uma certa forma são mesmo. Ninguém que seja completamente são, se é que isso existe, consegue penetrar no terreno do ovo. O acesso ao ovo é vedado às pessoas normais. Embora não se possa dizer que eu seja louco, trago em mim uma boa parcela de loucura que me permite entrar em contato com o ovo. Se você não for nem um pouco louco, este relatório lhe será incompreensível. Agora, se você for total ou parcialmente louco, ele soará como a coisa mais natural do mundo.

II

         O ovo é súbito. Não há demoras, não há esperas – o ovo é repentinamente: de repente, quando dou por mim, o ovo já está lá, instalado em sua própria e desconcertante existência. Se uma pessoa se distrai por um instante, é capaz de perder o aparecimento do ovo, como quem por estar distraído com outras coisas, não vê que uma estrela cadente acaba de riscar o céu.
         Se eu escrevo sobre o ovo, é para não esquecê-lo. A pessoa que se esquece do ovo morre para a vida. Mas o ovo existe independentemente de lembrarmo-nos dele ou não. O ovo é extremamente o ovo. Há algo de irremediável em sua existência. Há algo de trágico em seu permanecer sendo tão intensamente o ovo. Por isso, alguns acham que o ovo é arrogante. E é mesmo. É necessária muita arrogância para ser o ovo e, não contente com isso, seguir sendo sempre o ovo.
         Quem discordar, que faça a experiência: seja o ovo por um momento. Mas apenas por um momento, pois quem se arrisca a ser o ovo por mais tempo retorna à sua forma habitual inconformado com a vida. É que neste caso o ovo teve tempo suficiente para exercer sua sedução.
         Uma vez, uma pessoa foi o ovo por uma hora. Retornou aparentemente normal, mas no dia seguinte teve uma hemorragia interna. O ovo havia se apoderado da pessoa, e ela não teve como escapar. Dizem que quando já estava bem fraca, pediu que lhe trouxessem o ovo. Trouxeram. Quando pegou o ovo nas mãos, sua alma brilhou tão intensamente que, apesar de ser noite, todo o quarto ficou iluminado. Era o incêndio do ovo que se operava dentro dela. Logo depois, morreu. Com um sorriso nos lábios. O trabalho do ovo estava concluído.

III

         Enquanto escrevo sobre o ovo, começo a sentir uma grande liberdade em relação a um rapaz a quem amo, mas que não me ama. O ovo, em certas situações, pode agir como um potente elixir contra o desespero. Quando comecei a escrever, eu me sentia terrivelmente cansado do trabalho de amar sem ser amado. Mas agora já estou tão envolvido com o ovo, que por um momento me esqueci de amar. O amor, aliás, é coisa que o ovo não conhece. Ou melhor, ele até conhece, mas o amor não lhe desperta o menor interesse. Eu, que não sou o ovo, continuo amando, mesmo sabendo que tudo que faço nesse sentido é inútil. Eu amo porque sou bobo. Mas o ovo não é bobo. Nem burro como eu. Se bem que também não se possa dizer que o ovo seja inteligente. O ovo até tem uma certa inteligência, mas ela não é humana. A inteligência do ovo consiste em permanecer sendo eternamente o ovo, e isso não é compreensível para quem é mortal.
         Quando o planeta Terra for destruído por uma bomba de hidrogênio, coisa que não vai demorar muito, o ovo continuará existindo no espaço sideral. E ele não vai precisar de uma espaçonave, pois está muito acostumado com a ausência de gravidade. O ovo descreverá uma órbita elíptica ao redor do Sol. E quando o Sol se apagar, ele rumará para outra galáxia, provavelmente a de Andrômeda.
         Estou contando essas coisas sobre o ovo, mas eu mesmo não estou acreditando muito nelas. Isso acontece porque automaticamente o ovo insere na pessoa que escreve sobre ele uma desconfiança em relação ao próprio ovo. Para que a pessoa não fique confiante demais e comece a achar que está escrevendo verdades definitivas sobre o ovo. Trata-se de um método muito sofisticado que o ovo tem de escapar às pessoas que tentam entendê-lo.
         O ovo é esquivo. Ele não se deixa entender por inteiro. Ele se protege contra as tentativas da mente humana de dissecá-lo. Se não fosse assim, ele não seria ovo, seria um objeto qualquer. E o ovo é tudo, menos um objeto qualquer. Eu, se quiser entender um pouco do ovo, vou ter que ter muita paciência. O ovo exige que a pessoa seja extremamente paciente. Porque o ovo só se dá aos poucos, e nunca se dá inteiramente. Por mais que eu me esforce, a maior parte dos fatos sobre o ovo permanecerá sempre desconhecida para a humanidade.

IV
 [ Revelações sobre a relação de Vera Lia com o ovo ]

         Eu estava agora mesmo conversando no fumódromo. Mas tive que vir às pressas ao meu quarto, pois recebi um chamado do ovo. Quando o ovo chama, é preciso atender imediatamente.
         Receber um chamado do ovo significa que a pessoa está em sintonia. Com o ovo? Não. Pois isso é impossível para uma pessoa humana. Eu, portanto, não estou sintonizado com o ovo, mas com uma série de circunstâncias que cercam a existência do ovo. Vera Lia é outra pessoa sintonizada. Parece porém que ela tem sido extremamente negligente com suas responsabilidades para com o ovo. Por exemplo: um dia desses, eu pedi a Vera Lia que escrevesse um breve relatório sobre o ovo. Senti que ela estava preparada para tal tarefa. Mas qual não foi a minha surpresa quando Vera Lia me apresentou seu relatório. No começo, tudo ia bem. Ela falava sobre o ovo com autoridade de uma iniciada. Mas eis que de repente ela começa a falar sobre a galinha!
         Tentei explicar a Vera Lia que a galinha é uma mera depositária do ovo. O ovo usa a galinha como disfarce. Ela é apenas a sacerdotisa do ovo e, no fundo, não tem importância nenhuma. A galinha nem mesmo sabe ao certo se o ovo existe ou não. Ela viu o ovo num sonho e achou que ele era Deus. Desde então, ela vive cacarejando uma oração confusa dirigida ao ovo. Uma oração sem sentido nenhum. É apenas um mantra que ela fica a vida toda repetindo: “có, cócó, có, cócócó”.
         Tentei explicar tudo isso a Vera Lia, mas ela não entendeu. Ou, o que é mais provável, fingiu que não entendeu. Ficou me olhando por detrás dos óculos com aqueles olhinhos irônicos enquanto eu proferia meu discurso. Quando acabei, ela apenas sorriu e disse: “Vou tomar um café ali na Lúcia.” Isso me deixou tão enfurecido que fiquei sem falar com Vera Lia por uma semana. Mentira. Eu só consegui ficar sem falar com ela por duas horas.
         E agora, só de raiva, vou revelar tudo. O fato é que Vera Lia é uma agente do mais alto escalão. Ela se faz de boba, mas sabe muito mais sobre o ovo do que eu jamais chegarei a saber. Quando ela me apresentou seu relatório sobre a galinha, era só para me despistar e, quem sabe, me provocar um pouco. Na verdade, Vera Lia já atingiu um posto que não lhe exige mais que escreva relatórios. Ela já internalizou o ovo. O ovo está dentro dela, e às vezes eu percebo como ela anda com cuidado para não quebrá-lo. Aliás, com o dinheiro que anda recebendo por seu trabalho, ela comprou ações na Brahma e está rica. Quer dizer, mais rica. A riqueza de Vera Lia não é somente de dinheiro, mas é principalmente do ovo.
         Eu vou tentar fazer com que Vera Lia me revele algumas das coisas que sabe sobre o ovo, para com elas enriquecer este relatório. Mas duvido que ela me conte o que quero saber. Se eu perguntar, certamente vai ficar cacarejando sobre a galinha e não me contará nada de relevante sobre o ovo. Se ela esquecer de novo seu maço de Parliament na minha mesa de estudos, eu juro que jogo na privada e dou descarga.

V
 [ O ovo e a Filosofia ]

         O ovo não é físico. Mas ele também não é espiritual. O ovo não tem espírito. E o ovo não é místico, por mais que os cristãos insistam que ele é um símbolo de vida e ressurreição. O ovo não simboliza nada. O ovo não é um símbolo. O ovo é o ovo, sem simbologia. Quem diz o contrário está longe de entender o ovo. Se bem que a melhor forma de entender o ovo é não entendê-lo. Muitos filósofos já tentaram entender o ovo. Mas é preciso dizer que nenhum deles foi bem sucedido. A seguir, relato o que alguns filósofos importantes disseram sobre o ovo.
         Platão achava que o ovo é único ser do mundo sensível que não tem um correspondente no mundo inteligível. Com isso, ele quis dizer que o ovo é um simulacro de si mesmo, isto é, uma cópia da cópia de si mesmo.
         Plotino argumentou que o ovo está para Deus assim como Deus está para Sua própria divindade. Ninguém nunca conseguiu entender o que ele quis dizer com isso.
          Descartes, por sua vez, pôs em dúvida a existência do ovo. Segundo ele, de todas as coisas duvidosas do mundo, o ovo seria o mais duvidoso. Mas ele rapidamente abandonou essa ideia, pois logo após ter afirmado “Penso, logo existo”, ele percebeu que o mais acertado seria dizer “Ovo, logo existo.”
         Kant dedicou ao ovo um apêndice da Crítica da Razão Pura. Para ele, o ovo, juntamente com o tempo e o espaço, é uma das condições a priori do conhecimento.
         Schopenhauer, por sua vez, postulou que o ovo não serve de representação aos desígnios da Vontade. Ele é representação pura. Diz ele: “O ovo parece ser o resultado de um quase inacreditável desencontro entre o plano da representação e o plano da Vontade. O ovo é aquele que escapa: escapando de ser representação, deixa de estar subjugado à Vontade.” Mais tarde, o próprio Schopenhauer renegou essa tese como absurda e declarou que desistira de entender o ovo. “O ovo é ontologicamente incompreensível.” - resumiu o filósofo.
         Nietzsche aparentemente não deu muita importância ao ovo em sua obra. Porém, no ano passado uma pesquisadora húngara do Arquivos Nietzsche, na cidade alemã de Weimar, anunciou ter descoberto uma longa série de aforismos de Nietzsche sobre o ovo que nunca vieram à luz. Ainda não se sabe ao certo qual o conteúdo de tal material. A estudiosa responsável pela descoberta declarou à imprensa que os aforismos datam de 1873, época da redação de Humano, demasiado humano. A intenção de Nietzsche seria publicá-los como apêndice à obra citada, sob o título de Ovo, demasiado ovo. A pesquisadora revelou ainda que o cerne das reflexões de Nietzsche consiste em tomar o ovo como um dispositivo crítico na tarefa de transvaloração dos valores e desconstrução da metafísica ocidental de origem platônica.
         No século XX, Martin Heidegger considera o ovo como a expressão mais direta do Dasein (ser-aí). Através do ovo, o ser-enquanto-ser permaneceria indissoluvelmente ligado ao ente-enquanto-ente.
         Freud entende o ovo como um componente fundamental do complexo de castração. Para a criança, a ausência de testículos (popularmente “ovos”) na mãe gera a fantasia de que a mãe foi castrada pelo pai. Caso não reprima seu desejo sexual pela mãe, a criança conclui que será igualmente castrada pelo agente paterno e ficará como a mãe, sem pênis e sem testículos. Quando nesse estágio a repressão não se dá de forma eficiente, o adulto apresentará, de forma moderada ou grave, fetichismo pelo ovo ou por objetos ovóides, certamente associado a sintomas de neurose obsessiva. Em casos mais raros, na hipótese de que o ego não consiga se proteger das exigências instintuais mal reprimidas do id, parte do contato do ego com a realidade é abolido, dando origem ao que Freud chama de “psicose ovóide”.
         Eu espero que esse breve panorama seja capaz de fornecer ao leitor uma ideia geral do percurso do ovo na história do pensamento ocidental. Vários outros pensadores de nosso tempo tomaram o ovo como objeto de investigação filosófica: Jung, Lacan, Sartre, Foucault, Deleuze, Derrida, Barthes, Baudrillard, entre muitos outros.
         Contudo, como foi dito no início, nenhum deles logrou resolver por completo o mistério do ovo. As contribuições mais significativas são as de Freud e, muito possivelmente, a de Nietzsche. Quanto aos outros, lamento dizer que nem chegaram a roçar a casca do ovo. Apesar de todos os esforços da cultura, o ovo continua irremediavelmente indecifrável.

VI
 [ A epifania de Vera Lia ]

         O ovo não tem um em-si. A presença do ovo só se revela em sua ausência. O ovo presente não é importante. O que mais importa é o ovo ausente. Pois somente em sua ausência pode-se sentir a força inexplicável de sua presença. Sei que essas coisas que estou escrevendo podem ser difíceis demais de entender para quem nunca teve contato com o ovo. Mas estou tentando ser o mais claro possível. Para tornar as coisas mais fáceis ao leitor, vou dar um exemplo. É um exemplo simples, mas muito ilustrativo.
         Hoje, enquanto eu tecia meu cachecol na T.O., Vera Lia, que também é uma agente do ovo, se aproximou de mim e perguntou: “E depois?” Somente isso – “E depois?” Eu soube imediatamente que ela estava se referindo ao ovo. Como o leitor pôde notar, ela não mencionou o ovo. O ovo aparentemente estava ausente de sua fala. Mas só aparentemente. Porque na realidade ele estava presente em seu máximo grau. A melhor forma de falar do ovo é não falar a respeito dele. A melhor forma de se lembrar do ovo é esquecê-lo. Vera Lia sabe disso muito bem. Por isso, como resposta à sua pergunta, apenas olhei para ela sem dizer uma palavra. Ela entendeu e se deu por satisfeita. Ela compreendeu que o silêncio era a melhor resposta naquele caso. Agora, eu descobri porque Vera Lia fala tanto sobre a galinha, ao invés de falar sobre o ovo. É porque ao falar sobre a galinha, que nada tem a ver com o ovo, ela está secretamente e mais do que nunca falando sobre o ovo.
         Agora, vou dar um outro exemplo. Para que fique definitivamente claro ao leitor que a ausência do ovo é a forma mais forte de sua presença. Há alguns dias, Vera Lia me contou que durante sua licença terapêutica visitou um galinheiro, que é o lugar onde as galinhas ficam reunidas. Ela relatou-me que entrou no galinheiro e, num gesto mecânico, foi logo à procura do ovo. Porém, por mais que ela procurasse, não encontrou nenhum. Intrigada, ela seguiu procurando. Pensou que talvez o ovo estivesse se escondendo dela por alguma razão misteriosa. Mas sua busca foi inútil. Não havia um ovo sequer em todo o galinheiro. Vera Lia relatou-me que foi nesse momento que ela teve uma espécie de insight ou, como ela mesmo disse, uma “iluminação”. Ela compreendeu subitamente que a ausência do ovo no galinheiro, lugar onde tradicionalmente ele deveria estar, é a prova mais exata de sua incomparável presença. Um galinheiro onde não exista nenhum ovo é o sinal mais evidente da presença irremediável do ovo. Nenhum outro sinal poderia ser mais claro do que esse.
         Vera Lia me disse que saiu transformada dessa experiência no galinheiro. Todo o seu entendimento sobre o ovo sofreu depois disso uma reviravolta radical. Na verdade, o que Vera Lia experimentou em meio às galinhas é chamado pelos místicos de “epifania”, que é quando uma pessoa compreende repentinamente algo muito importante sobre o mundo. A palavra “epifania” vem do grego ephinaneia, que significa “aparição” ou “manifestação”. No caso de Vera Lia, seria mais acertado dizer que ela passou por uma “ovofania”, isto é, uma revelação do mistério do ovo.
          Espero que esses dois exemplos tenham esclarecido o leitor a respeito da ideia que apresentei no início dessa seção. Se for esse o caso, já podemos avançar para a próxima parte deste relatório. Ainda falta muita coisa a dizer sobre o ovo.

VII

         O ovo é fundamentalmente uma entidade múltipla. Há várias faces do ovo que ele não revela, mas que a nós, agentes do ovo, se mostram particularmente nítidas. Vou agora falar de algumas faces do ovo.
         O ovo pode ser extremamente destrutivo. Na Segunda Guerra Mundial, se os americanos tivessem lançado sobre Hiroshima e Nagasaki, ao invés da bomba atômica, um ovo, o estrago teria sido dez mil vezes maior.
         O ovo é profético. Se alguém está distraído e de repente vê o ovo, é sinal de que a pessoa está predestinada. Uma vez, uma mulher estava tricotando e viu o ovo. Levantou-se assustada, pois não se lembrava de ter posto um ovo ali na mesa de costura. Mas o caso não era para sustos. O ovo apenas queria dizer que ela iria fazer uma viagem e que estava vivendo o período mais feliz de sua vida.
         E há histórias curiosas. Certa vez, um homem estava desejando muito uma mulher. Estava, aliás, indo em busca dela quando ovo apareceu no meio da rua. Flutuando calmamente no espaço. O homem, àquela altura, não deu muita importância ao ovo, porque estava preocupado demais com a mulher. Mas eis que ao chegar à casa da mulher, esta estava com um amigo. Os dois conversavam enquanto bebericavam chá. O homem, no mesmo instante, ao ver aquela cena, esqueceu completamente a mulher. E passou a nutrir uma paixão aguda pelo amigo dela. Não sei como o caso terminou. Mas a influência do ovo sobre esse homem deve ter sido muito forte.
         O homem, inclusive, nunca na vida havia se interessado por outro homem. Aquela foi a primeira vez. O ovo é sempre a primeira vez. Talvez já existisse dentro do homem, sem que ele soubesse, uma semente do amor por outro homem. Sob a influência do ovo, a semente germinou, a planta cresceu e dela desabrochou uma inesperada flor. Uma flor exótica e misteriosa, que só se abre quando dois homens estão se amando.
         Todo esse processo, que poderia levar a vida toda do homem, durou apenas alguns minutos. Porque o ovo se fez presente. Bastou que o homem olhasse por um único instante o amigo da mulher para saber que era ele quem amava, e não a mulher. Mas a mulher não ficou chateada. Com um gesto gracioso, abençoou a união dos dois e discretamente se retirou para deixar que eles conversassem. O ovo tem dessas coisas. Ele pode insuflar o amor. Mas há também casos de morte. Peço ao leitor que for muito sensível que pule essa parte do relatório.
         Eu vou dizer uma coisa que vai soar agressiva, mas que veio a mim através do ovo. Por isso não posso silenciar. É o seguinte: ser católico é uma coisa indecente. O ovo não esquece nunca, mas os católicos aparentemente “esquecem” que há não muito tempo a Igreja Católica torturou, encarcerou e assassinou centenas de milhares de pessoas por intermédio do Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido como Inquisição.
         A Igreja Católica é a instituição mais perversa criada pelo ser humano. Ela inventou a noção de “pecado”. Nenhuma outra noção humana gerou uma quantidade tão grande de sofrimento, através dos séculos, como essa que o “pecado” gerou. Quando à Inquisição, ouvi dizer que esses dias o papa se “desculpou” perante a humanidade pelos crimes da Igreja. Ah, ele se “desculpou”! Quanto amor cristão há nesse pedido de desculpas!
         Vamos então imaginar uma cena: digamos que primeiro você encarcera uma pessoa numa masmorra escura e fétida por dez anos. Passado esse tempo, você tortura a pessoa por meses com os mais finos requintes de crueldade. Depois disso, você resolve matar a pessoa e faz com que ela mergulhe em óleo fervente ou queima a pessoa viva. Digamos que então, no futuro, você tem a oportunidade de se encontrar com a tal pessoa e diz assim: “Olha, eu estou um pouco arrependido, sabe? Eu te encarcerei, te torturei e depois lancei você no meio de uma fogueira onde você morreu queimando lentamente. Você me desculpa?”
         Eu começo a falar da Igreja Católica e, imediatamente sinto uma espécie de enjôo, um nojo, um asco. Como se eu estivesse lidando com excrementos frescos ou com carne putrefata. Por isso, vou voltar ao ovo. Isso foi só um desabafo. Afinal, de tempos em tempos, alguém tem que dizer essas coisas. Porque se ninguém disser, de tão horríveis, fica parecendo que elas nunca aconteceram.
         Escrever isso me deixou exausto. Vou dormir e amanhã bem cedo escreverei algo brilhante sobre o ovo. Boa noite, ovo. Eu sei que você não dorme, mas mesmo assim boa noite. Até amanhã, ovo. Vou dedicar o dia de amanhã exclusivamente ao ovo. Como uma compensação por ter contaminado o relatório com essa história de católicos. Eu viverei o dia de amanhã dentro da luz cristalina do ovo. E assim, espero me purificar do lixo que acabei de escrever, apesar de esse lixo ser a mais pura verdade. O ovo não liga para a mais pura verdade. Ele tem coisas mais importantes a fazer.
         Ovo, eu peço que você tenha um pouco de paciência e espere enquanto eu durmo para que amanhã eu acorde renovado e seja capaz de escrever sobre a sua glória. Prometo que não escrevo mais sobre coisas imundas. Agora vou mesmo. Boa noite, ovo. Até amanhã. Não se pode dizer “até amanhã” ao ovo, porque o ovo é sempre hoje. Ovo, perdoe minha falha humana. E ovo, cuide de mim enquanto eu durmo, para que eu não sonhe com fogueiras e crucificações. Ovo, eu queria mesmo era sonhar com você. Um sonho assim: só o ovo. Boa noite, ovo. Tente descansar um pouco de ser o ovo. Aqui vou eu.

VIII

         O ovo é um dispositivo aberto. Embora o ovo pareça fechado em si mesmo, ele é aberto para o mundo e para a vida. Isso não quer dizer que o ovo seja bonzinho. A vida do ovo também compreende a morte. As pessoas evitam falar da morte, assim como evitam falar do ovo.
         Um dia desses, eu e Vera Lia discutíamos alguns tópicos importantes sobre o ovo no convívio. Havia pessoas ao redor. Eu percebi, pelo olhar das pessoas, que elas estavam incomodadas com a discussão, embora nenhuma delas tenha expressado isso com palavras. Era evidente que o ovo estava causando um mal estar. Algumas das pessoas até mesmo se afastaram dali, com o olhar transtornado. Outras ficaram e mesmo angustiadas tentavam entender o que estava sendo dito. Percebendo isso, eu e Vera Lia baixamos o tom de voz, de modo que a pessoas interessadas se aproximaram de nós e esticaram o pescoço no intuito de captar alguma palavra. Mas nesse ponto a discussão sobre o ovo já se encerrara. Quando as pessoas perceberam que eu e Vera Lia já não falávamos mais do ovo, retiraram-se cabisbaixas, murmurando entredentes: “Esses dois são completamente malucos.” Esse é um exemplo de como o ovo pode provocar um grande desconforto em quem não está preparado para ele.
         Uma vez, um agente, sem perceber, deixou cair um de seus relatórios sobre o ovo na calçada. Foi num bairro chique do Rio de Janeiro. Uma madame que passeava com seu poodle achou o relatório e o leu, ali mesmo na calçada. Era um relatório ultra-confidencial. Caiu desmaiada assim que acabou de ler. Foi hospitalizada em coma profundo. A mulher não foi capaz de suportar o poder terrificante do ovo.
         Outro caso interessante foi o do praticante de Yoga que escolheu o ovo como objeto de concentração enquanto meditava. Má escolha, má escolha. Concentrar-se no ovo pode ser extremamente perigoso. Dizem que o praticante nunca mais conseguiu sair do estado de meditação. Ele desde então fica em sua esteira, sentado em posição de lótus, repetindo um mantra que não é OM, mas OVO. O mais provável é que este praticante, de tanto meditar, acabe em pouco tempo atingindo a iluminação. Será o primeiro Buda do ovo. O ovo búdico é um dos objetos mais sagrados do Oriente.
         Estou tentando escrever coisas importantes sobre o ovo, mas estou sofrendo. O que eu queria mesmo é escrever um poema de amor. Um poema tão triste, tão aflito, tão sentido, que só de pensar nele meus olhos se enchem de lágrimas:


Tu, que te foste, e aqui me deixaste sem ti,
e aqui me deixaste tão só, sem teus olhos,
sem teu brilho – eu, que agora ando no escuro
em busca de um vestígio teu, qualquer vestígio,
quem sabe um pouco do teu cheiro que ficou
parado no ar do quarto onde conversávamos,
quem sabe um rabisco teu, que fizeste quando
me explicavas sobre a arte de fundir os metais.

Tu, que te foste, e levaste contigo meu coração,
tu, que levaste a minha alma – eu, que me recolho
sem ti em qualquer canto e sofro a dor de ter que
pertencer a um espaço sem ti, um tempo sem ti,
as estrelas que brilham sem ti, tão longínquas,
como tu és longínquo em relação a mim.

Tu, que brilhas ainda que estejas ausente:
tu brilhas dentro aqui – bem, bem dentro aqui.

         O ovo consentiu que eu escrevesse um poema piegas. Obrigado, ovo. Já me sinto bem melhor. Para terminar essa seção, vou contar mais uma história que tem a ver com o ovo. É assim: “Era uma vez o ovo. O ovo estava imóvel. Alguém passou por ele e disse: “Boa tarde, ovo.” O ovo não respondeu. Só pensou: “Rá!” E continuou imóvel. Continuou sendo o ovo por muito tempo. Aliás, por muitíssimo tempo. Fim.
         Essa é a história. Parece banal, mas nela está contida toda a sabedoria do ovo. Se você não conseguiu entender, leia de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Até entender.
         Alguns são, outros não. Eu sou. Vera Lia também é. O faraó Tutankhâmon não era. Cristo era, Freud era. A moça que limpa o meu quarto é. Minha psicóloga também é. Uma das secretária é, as outras duas não.
         Ovo, eu acho que finalmente estou entendendo. Entendendo o ovo? Não. Então, entendendo o que? O que, meu Deus? O que?

IX
[ O ovo e a lógica aristotélica ]

         O ovo é nem mais nem menos. O ovo é a coisa mais simples de entender e ao mesmo tempo a mais complexa. Os cientistas dizem que o cérebro humano é o objeto mais complexo do universo. Estão enganados: é o ovo. Na Revolução Francesa o ovo desempenhou uma papel fundamental, pois a guilhotina foi projetada segundo um modelo ovóide. “Ovóide” quer dizer “aquilo ou aquele que tem a forma do ovo.” Isto, porém, está errado. Pois nada ou ninguém pode ser comparado ao ovo de uma maneira tão direta. O ovo, aliás, não admite comparações. Quem se compara ao ovo está incorrendo num erro muito grave.
         O ovo é o instante-já. Quando se tenta compreender o instante-já, ele já passou, já se tornou um instante-foi. Assim também acontece com o ovo: o ovo-já é inapreensível e inexplicável. Pode-se apenas tentar compreender o ovo-foi. E mesmo isso com muita dificuldade. Quando uma pessoa pensa no ovo e tenta dizer alguma coisa sobre ele, ele já passou. A pessoa perde ovo no mesmo instante em que pensou tê-lo conquistado. É como diz Clarice Lispector em seu relatório: “Ovo  visto, ovo perdido.”
         Apesar de ser inalcançável, o ovo continua se oferecendo em uma série de instantes-já que nunca acabam. Uma das estratégias mais sofisticadas do ovo é estar sempre oferecendo uma nova oportunidade de entendê-lo, mas invalidando essa oportunidade no mesmo instante em que a oferece. Por isso tudo, só se pode pensar sobre o passado do ovo. Pensar sobre o seu presente não é executável pela mente humana.
         Quanto ao futuro do ovo, é um tema dificílimo. Eu não quero falar sobre o futuro do ovo. Embora Vera Lia tenha insistido várias vezes para que eu falasse sobre esse tema, prefiro me calar. Porque o futuro do ovo é tão enigmático que qualquer coisa que eu diga a esse respeito soará como um ataque às leis mais básicas da lógica aristotélica.
         Veja-se o seguinte exemplo, que vou dar apenas a título de ilustração. Para Aristóteles, “silogismo” é um raciocínio dedutivo estruturado a partir de duas proposições (premissas), das quais se obtém uma terceira (conclusão). Assim:

Premissa 1: Sócrates é humano.
Premissa 2: Todos os humanos são mortais.
Conclusão: Logo, Sócrates é mortal.

Até aí, tudo parece muito claro e fácil de entender. Porém, basta que o ovo entre em cena para que as coisas comecem a ficar mais complicadas ou até mesmo incompreensíveis. Como o ovo não respeita as leis da lógica, se alguém tentar montar um silogismo com o ovo, o resultado será perfeitamente absurdo, capaz de botar o próprio Aristóteles de cabelo em pé. Seria algo deste gênero:

Premissa 1: O ovo é o ovo.
Premissa 2: Todos os ovos são o ovo.
Conclusão: Logo, o ovo é o ovo.

Ou ainda:

Premissa 1: O ovo é uma nuvem.
Premissa 2: Nem todas as nuvens são o ovo.
Conclusão: Logo, meu sapato está apertado demais.

Ou, por fim, mais radicalmente:

Premissa 1: O ovo é um guindaste.
Premissa 2: Dentro da névoa, há pessoas imóveis a esperar.
Conclusão: A esperar o que? O que?

         Como espero ter demonstrado com esses exemplos, o ovo é imune à lógica aristotélica. O ovo tem sua própria lógica. A única forma de pensamento humano que guarda certa semelhança com o ovo é o Zen. Mas não vou falar da relação da relação entre o Zen e o ovo. Seu começasse a falar disso, este relatório acabaria com cem mil páginas.
         Estou tentando escrever de forma simples, para que todos possam entender pelo menos um pouco do ovo. Mas, pensando bem, isto de “entender um pouco do ovo” não é possível. Ou a pessoa entende o ovo ou não entende, sem meio termo. É como quando uma mulher está grávida. Ou ela está grávida ou não está. Nunca se teve notícia de uma mulher mais ou menos grávida ou ligeiramente grávida. Assim é com o ovo. Neste sentido, o ovo é totalitário. Ou é o ovo total ou é nada de ovo. Não há ovo pela metade. Há somente o ovo completo.
         Querer dividir o ovo seria como querer dividir o nada, de forma que dessa divisão resultassem dois nadas distintos. Mas isto é impossível. Pois para que existam dois nadas distintos é necessário que alguma coisa os separe. E se “alguma coisa” existe, já não se pode falar em “nada”.
         Estou procurando ser claro, mas vejo que eu mesmo estou me confundindo. Vou agora tomar meu “se-necessário”. E depois vou me banhar luz cristalina do ovo. A luminosidade divinatória. Adeus por enquanto, ovo. Logo voltaremos a nos encontrar. Antes de escrever a última parte deste relatório preciso me purificar. Pois só dos puros é o Reino do Ovo. Amém, ovo. Auf wiedersehen, Ei. Fareweel, egg. Au revoir, oeuf. Hasta la vista, uevo.
X

[ Última parte: o transe hipnótico do ovo ]

         O relatório está chegando ao fim. Graças ao ovo? Não, graças a mim, que sou o seu fiel escriturário. Esta última seção é a mais difícil de todas. Tanto para o leitor quanto para mim, o devotado escriba do ovo. Acho que escrevi tanto sobre o ovo que fiquei como que intoxicado por ele. Até aqui, tentei manter certa sobriedade em relação ao ovo, mas isso já não é possível. A intoxicação do ovo é suave, mas também é violenta. Vou pedir perdão aos leitores se eu escrever algo de ofensivo ou obsceno. Talvez eu nem escreva, mas se eu escrever o perdão já fica garantido.
         Estou entrando em transe hipnótico induzido pelo ovo. Já não posso me responsabilizar pelas coisas que estou prestes a dizer. Há tantas coisas que eu ainda queria contar sobre o ovo. Mas agora já não há mais tempo. Adeus, mundo. Estou indo para o ovo. Dessa viagem ninguém jamais retornou.

[ Nota da Equipe Médica do Ovo (EMO): A seguinte passagem foi produzida pelo agente em estado de transe. Nós, da Equipe Médica do Ovo transcrevemos fielmente tudo o que o agente disse enquanto durou o transe. Grunhidos e palavras incompreensíveis foram suprimidos. Os sinais vitais do agente foram monitorados durante a experiência. Em duas ou três ocasiões, o agente mostrou-se agitado. Tudo indicava que estava à beira de uma crise convulsiva que felizmente não aconteceu. A seguir, a transcrição exata das palavras do agente durante o estado de transe. ]

Transcrição

         “Eu? Eu sou o ovo? Não, eu não sou o ovo, apesar de sê-lo num nível mais profundo. Onde está o ovo? Não sei. O ovo deve estar em toda parte. Preciso confessar uma coisa: eu amo o ovo. Mas... o ovo não me ama. Se eu soubesse apenas como obter uma partícula do amor do ovo... [ Lágrimas do agente ] Eu me ajoelharia aos pés do ovo e declararia a imensidão e a urgência do meu... amor? O nome do ovo começa com a letra D.
         Ah, estou tão cansado... Eu vou atravessar o rio do esquecimento que conduz ao Hades. O rio dos mortos. [ Cessam as lágrimas do agente ] Nas margens, vejo o vulto dos enforcados pendendo dos galhos raquíticos. Caronte já espera na barca. Entrego a ele o óbulo. As águas do rio são tão viscosas, como sangue coagulado.
          Uma vez, eu matei uma galinha. Não acertei direito o golpe. Ela saiu dançando com a cabeça pendurada. Era a dança do ovo. Esguichando sangue pelo pescoço. Oh, sangue, sangue de novo. Por que tanto sangue? Quando me lembro dele – não do ovo, mas dele – uma gota de sangue negro escorre do meu coração. Aliás, o que estou dizendo aqui é pura magia negra. Porque o diabo é forte. Porque o diabo é forte. Posso ver os cascos dele fazendo riscos no chão seco. O ovo passa sobre nós como um abutre. O céu é tão vermelho. Estou ouvindo um canto fúnebre. Alguém teve uma morte violenta. O ovo-abutre emite guinchos: uma ladainha demoníaca. A morte é tão doce, ovo. O inferno é tão doce. Basta mergulhar a lâmina no lugar certo. Porque o ovo não admite arma de fogo.
         Na floresta, há um grupo de diabos seminus que dançam ao redor do Grande Ovo. Os peitorais são largos, as pernas são potentes, os diabos são extremamente másculos. [ O agente está visivelmente excitado ] E os diabos gargalham em uníssono e entoam em louvor do grande ovo um hino polifônico e cáustico. Alguns deles se afastam em pares rumo às partes mais escuras da floresta. E os gemidos, e as súplicas, e as veias saltadas no pescoço quando o interior de um se abre à febre violenta do outro: mais, mais, mais, mais fundo. A floresta arde de alegria e dor, as árvores pulsam e a seiva escorre dos lábios e fecunda o chão. E o escárnio, ah, o escárnio é a febre do Grande Ovo. O ídolo orgiástico.
         Mas agora a música parou. Aqueles que estiveram juntos retornam dos fundos da floresta: vêm tão leves, tão pacificados. Não, não são mais diabos. Estão transfigurados, pálidos. O Grande Ovo espalha pelos arredores uma luz difusa. Tudo é tão arcaico. O Grande Ovo é tão incendiário.
         Eu vejo o Grande Ovo subindo até a estratosfera e espalhando suas garras sobre a Terra. É um grande polvo de mil e um tentáculos que vão lentamente dominando a Jônia, a Etrúria, a Tessália, a Macedônia, a Anatólia, a Trácia, a Frígia, a Ligúria. Não há limites para o voraz expansionismo do ovo-polvo.
         Na Grécia, o ovo se encontra com um grupo de bacantes que dançam em louvor a Dioniso. Quando elas veem o ovo, começam a dançar furiosamente, como se o ovo fosse um sinal do deus. Mas o ovo, a essa altura, já deixou de ser um sinal. O ovo é fosforescente. E está aberto sobre os pântanos, sobre os matagais. Ele voa sem precisar de um tapete mágico.
         Eu olho para o ovo e percebo que ele tem algo a dizer. O ovo nunca disse nada. Nunca foi necessário. Mas agora há uma urgência de extravasamento que o ovo já não pode conter. Ele, que sempre se mostrou tão magnânimo, tão senhor de si. Ele, que sempre foi tão prepotente. O ovo, que julgávamos ser o herói inescrutável, agora precisa falar. Será uma súplica? Será uma confissão? Será um desabafo? Ainda não sabemos. Ele começa assim:
         “Vocês. Mortais. Eu me apresento: sou o ovo. Ninguém chega ao Pai senão por mim. Muito menos vocês – os perecíveis. Eu instituo a Lei. Vocês não conhecem a Lei do ovo. Mas devem segui-la assim mesmo. Eu desci do céu e vim habitar entre vocês. Para que vocês saibam o que significa a palavra “existência”. Mas vocês não sabem. Não por incompetência minha. Mas porque vocês são burros. Vocês são burros, chatos, feios e não morrem nunca. Ou melhor. Morrem. E bem rápido.
         Apesar da estupidez que vocês demonstram em relação a mim, eu acabei me afeiçoando a vocês. Porque vocês são tão nulos, tão irrisórios, tão transitórios. Vocês são insignificantes. E o que eu gosto em vocês é que vocês não se conformam com essa insignificância. Vocês são artistas: para combater a dor que a insignificância causa, vocês inventam magníficos castelos no vácuo. Vocês têm um poder tão grande de fantasiar que me deixa até comovido.
         Veja só – vocês foram até mesmo capaz de inventar um outro mundo além desse em que vivem! Quem é capaz de inventar um mundo merece alguma consideração. Mesmo que esse mundo não passe, como é o caso, de um belo delírio. Além disso, vocês creem que são especiais, que são importantes, que uma Providência benevolente cuida de vocês. Vocês que estão aptos a vencer a morte. Ah, vencer a morte! Ahahahahaha! Perdão. Minha intenção não é zombar de vocês. Eu quero mesmo é elogiá-los. Pois de tudo que vocês, artistas, criaram, há algo simplesmente genial. Você s foram capaz de inventar – Deus! Estou falando sério. De todas as coisas inimagináveis, vocês inventaram a mais inimaginável – Deus! Não importa que o Deus que vocês criaram, hoje em dia esteja morrendo. Em alguns círculos, ele nem se chama mais Deus, mas adotou o nome meio envergonhado de “Poder Superior” ou “energia cósmica”. Mas isso não importa. O que importa é a invenção em si. A invenção é a arte que vocês magistralmente dominam. Por isso, eu, o ovo, desenvolvi uma certa admiração por vocês. Vocês são mestres em sonhar acordados. A vida de vocês se parece mais com um sonho do que um sonho se parece com ele mesmo.
         E para vocês, parar de sonhar pode ser incrivelmente perigoso. Pois se muitos de vocês pararem de sonhar e acordarem, é provável que queiram acordar também os outros que continuaram a dormir. E se vocês acordarem, vão perceber que a realidade nada tem a ver com o que vocês sonharam. E isso pode ser catastrófico. Aplicar um choque de realidade em quem passou a vida inteira sonhando é certamente fatal para o sonhador. Se vocês acordarem, tudo o que vocês laboriosamente construíram durante milênios de civilização será derrubado. Todas as palavras em que vocês acreditam hoje perderão o sentido e voltarão a ser o que eram no início: somente sons articulados. Todos os poderosíssimos ídolos em que hoje vocês depositam sua fé serão reduzidos a pó. Isso provavelmente gerará um furor global de morte e suicídio. Será como um apocalipse. Mas, depois de tudo, quando o pior já houver passado, os sobreviventes hão de experimentar um maravilhoso sentimento de liberdade. O mar estará novamente aberto para vocês. Vocês provavelmente nunca viram tanto mar aberto. A aventura voltará a ser possível. A vida voltará a ser possível.
Eu sou o ovo. E esta é minha mensagem para vocês. Devo agora deixá-los. Vocês devem decidir por si mesmos se querem continuar sonhando ou se querem acordar. Somente aqueles que estão acordados veem o ovo. [ O agente vagarosamente desperta do transe hipnótico ]

Fim da transcrição

***

         Este relatório chegou ao fim. O ovo continua sendo ele mesmo. Os relatórios que os agentes escrevem não alteram em nada a existência do ovo. O ovo pode alterar a existência das pessoas que entram em contato com ele. Mas o ovo mesmo é inalterável. Se alguém tenta alterar o ovo, é capaz que acabe se alterando a si mesmo. Para melhor ou para pior. Nunca se sabe. Porque o ovo é imprevisível. Inalterável e imprevisível. O ovo gosta muito de paradoxo.
         Agradeço à agente Vera Lia, que teve a heroica paciência de ouvir cada trecho deste relatório enquanto ele ia sendo redigido. Vera Lia, como o leitor pôde perceber, serviu de magnífica inspiração a vários trechos deste relatório. Sem Vera Lia e sua imaginação prodigiosamente brilhante, este relatório não existiria.
         Quanto ao ovo, vou deixá-lo em paz por algum tempo. Ou melhor: é o ovo que vai me deixar em paz. Ovo, faça em mim segundo a tua vontade. Pai, afasta de mim este ovo. Ovo, por que me abandonaste? Eu e o ovo somos um. O ovo é o caminho, a verdade e a vida. Ovo, não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo. E finalmente: Ovo, em tuas mãos entrego meu espírito.

FIM.

Tudo o que escrevi é verdade e existe.

FIM.

OVO.

E agora: FIM.