O Relatório do Ovo
Ao ovo, dedico a nação chinesa.
Clarice Lispector. “O ovo e a galinha”
I
Aqui estamos. Nós e o
ovo. O que é o ovo? Para essa pergunta não há resposta. Este é o relatório do
ovo. Eu sou um agente. Minha tarefa é escrever relatórios. Sobre o ovo? Talvez.
Este relatório está dividido em dez partes. Porque dez é o número do ovo. Cada
parte fala de um aspecto do ovo ou de alguma situação da qual o ovo foi
protagonista. O relatório foi escrito em linguagem simples, sem floreios.
Exceto talvez a décima e última seção, que é a transcrição do meu delírio. Por
alguma razão obscura, o ovo sempre conduz ao delírio e à embriaguez. Mas uma
embriaguez rigorosamente sóbria. A sobriedade delirante é um dos principais
atributos do ovo.
Por que eu escrevi este
relatório? Não sei. “Não sei” é sempre a melhor resposta. É a resposta do ovo.
A pessoa que diz “não sei” está aberta para a vida. É por isso que não saber do
ovo é a melhor forma de saber dele. Quem diz que entende o ovo está a milhões
de anos-luz de entendê-lo. Portanto, este relatório não é uma tentativa de
entender o ovo. Pelo contrário, é uma tentativa de não entendê-lo e assim
adquirir algum conhecimento a respeito dele.
E escrever sobre o ovo
tem muito a ver com o processo de ir entendendo cada vez menos. Eu escrevi
tanto sobre o ovo que meu entendimento sobre ele reduziu-se a zero. Zero é o
número místico. Quando uma pessoa chega ao zero, atingiu a plenitude. O intuito
deste relatório é fazer com que cada pessoa encontre seu próprio caminho em
direção ao zero. Porque há muitos caminhos. Um deles é o ovo. Através do ovo,
uma pessoa, caso esteja realmente empenhada, pode alcançar o zero em um tempo
relativamente curto.
Isto não quer dizer que o
ovo seja apenas um meio pelo qual se chega a alguma outra coisa. E o ovo também
não é um fim, não é um objeto a ser perseguido. É inútil perseguir ovo. Ele
sempre encontra maneiras de escapar ao perseguidor. E além disso ele já está
lá: então para quê persegui-lo? Os que perseguem o ovo são tolos. Aquele que
deixou de persegui-lo é sábio.
O ovo não é verídico. Mas
ele é verdadeiro. Existe uma enorme diferença entre verdade e veracidade. Uma
fato verídico acontece fora de você. É algo verificável que pertence ao mundo
externo. A verdade acontece por dentro. Ela é um processo interno ao qual só
você tem acesso. A verdade é uma experiência interior. Sei que isso que estou
dizendo parece clichê de autoajuda, mas preciso continuar assim mesmo.
Você não pode transmitir
a verdade a ninguém. Cada pessoa tem o seu processo exclusivo. E a verdade não
é algo que se atinge ao fim do processo. A verdade é o próprio processo em
mutação contínua. A verdade, como se diz na filosofia, é um “devir”, ou seja,
algo que está em perpétua mudança e transformação. Aqueles que creem em uma
verdade estática e definitiva nunca conseguem sair da superfície. Aqueles que
afirmam que estão dizendo a verdade são mentirosos. Não há nada mais mentiroso
do que dizer a verdade. Porque a verdade não é dizível. Algo que está em
constante mudança não pode ser traduzido em linguagem comum. Por isso, somente
a Poesia, que é uma forma muito especial e mágica de linguagem, tem acesso a
certas parcelas sempre limitadas da verdade. A ligação entre Poesia e magia é
tão antiga quanto o ser humano.
Estou falado sobre a
verdade e parece que me esqueci do ovo. Mas não. Quando aparentemente me
esqueço do ovo e começo a falar sobre outra coisa, aí sim é que realmente estou
falando dele. E vice-versa: quando estou falando diretamente do ovo é porque na
realidade estou falando sobre alguma coisa completamente diferente.
Portanto, caro leitor,
esteja alerta: sempre que eu me referir ao ovo durante este relatório, saiba
que não é a ele que estou me referindo. Embora muitas vezes pareça que estou
realmente falando do ovo, não se deixe enganar. Se eu falar do ovo, é porque o
ovo não está ali. Agora, se eu falar sobre coisas que nada têm a ver com o ovo,
aí sim estou falando dele. Porque o ovo só é acessível de forma indireta. Para
captar os sinais vibratórios do ovo preciso ser oblíquo e dissimulado.
O ovo é como um animal
arisco. Se eu me aproximar dele sem cuidado, ele escapa no mesmo instante. Só
se aproxima do ovo quem é extremamente delicado. Quem tem a paciência e a
perspicácia de fazer inúmeros rodeios e circunvoluções. Se eu me mover em linha
reta em direção ao ovo, não vou conseguir nada. Para chegar ao ovo, preciso ser
flexível. Preciso que meu discurso seja uma sucessão de curvas suaves e
espiraladas que lentamente vão traçando ao redor do ovo uns cautelosos
arabescos.
Todas essas são
informações básicas sobre o ovo. Para um agente, tudo o que acabo de relatar é
muito óbvio. Mas para quem nunca teve uma experiência com o ovo, os fatos
referidos acima podem parecer loucura. E de uma certa forma são mesmo. Ninguém
que seja completamente são, se é que isso existe, consegue penetrar no terreno
do ovo. O acesso ao ovo é vedado às pessoas normais. Embora não se possa dizer
que eu seja louco, trago em mim uma boa parcela de loucura que me permite
entrar em contato com o ovo. Se você não for nem um pouco louco, este relatório
lhe será incompreensível. Agora, se você for total ou parcialmente louco, ele
soará como a coisa mais natural do mundo.
II
O ovo é súbito. Não há
demoras, não há esperas – o ovo é repentinamente: de repente, quando dou por
mim, o ovo já está lá, instalado em sua própria e desconcertante existência. Se
uma pessoa se distrai por um instante, é capaz de perder o aparecimento do ovo,
como quem por estar distraído com outras coisas, não vê que uma estrela cadente
acaba de riscar o céu.
Se eu escrevo sobre o
ovo, é para não esquecê-lo. A pessoa que se esquece do ovo morre para a vida.
Mas o ovo existe independentemente de lembrarmo-nos dele ou não. O ovo é
extremamente o ovo. Há algo de irremediável em sua existência. Há algo de
trágico em seu permanecer sendo tão intensamente o ovo. Por isso, alguns acham
que o ovo é arrogante. E é mesmo. É necessária muita arrogância para ser o ovo
e, não contente com isso, seguir sendo sempre o ovo.
Quem discordar, que faça
a experiência: seja o ovo por um momento. Mas apenas por um momento, pois quem
se arrisca a ser o ovo por mais tempo retorna à sua forma habitual inconformado
com a vida. É que neste caso o ovo teve tempo suficiente para exercer sua
sedução.
Uma vez, uma pessoa foi o
ovo por uma hora. Retornou aparentemente normal, mas no dia seguinte teve uma
hemorragia interna. O ovo havia se apoderado da pessoa, e ela não teve como
escapar. Dizem que quando já estava bem fraca, pediu que lhe trouxessem o ovo.
Trouxeram. Quando pegou o ovo nas mãos, sua alma brilhou tão intensamente que,
apesar de ser noite, todo o quarto ficou iluminado. Era o incêndio do ovo que
se operava dentro dela. Logo depois, morreu. Com um sorriso nos lábios. O
trabalho do ovo estava concluído.
III
Enquanto escrevo sobre o
ovo, começo a sentir uma grande liberdade em relação a um rapaz a quem amo, mas
que não me ama. O ovo, em certas situações, pode agir como um potente elixir
contra o desespero. Quando comecei a escrever, eu me sentia terrivelmente
cansado do trabalho de amar sem ser amado. Mas agora já estou tão envolvido com
o ovo, que por um momento me esqueci de amar. O amor, aliás, é coisa que o ovo
não conhece. Ou melhor, ele até conhece, mas o amor não lhe desperta o menor
interesse. Eu, que não sou o ovo, continuo amando, mesmo sabendo que tudo que
faço nesse sentido é inútil. Eu amo porque sou bobo. Mas o ovo não é bobo. Nem
burro como eu. Se bem que também não se possa dizer que o ovo seja inteligente.
O ovo até tem uma certa inteligência, mas ela não é humana. A inteligência do
ovo consiste em permanecer sendo eternamente o ovo, e isso não é compreensível
para quem é mortal.
Quando o planeta Terra
for destruído por uma bomba de hidrogênio, coisa que não vai demorar muito, o
ovo continuará existindo no espaço sideral. E ele não vai precisar de uma
espaçonave, pois está muito acostumado com a ausência de gravidade. O ovo
descreverá uma órbita elíptica ao redor do Sol. E quando o Sol se apagar, ele
rumará para outra galáxia, provavelmente a de Andrômeda.
Estou contando essas
coisas sobre o ovo, mas eu mesmo não estou acreditando muito nelas. Isso
acontece porque automaticamente o ovo insere na pessoa que escreve sobre ele
uma desconfiança em relação ao próprio ovo. Para que a pessoa não fique
confiante demais e comece a achar que está escrevendo verdades definitivas
sobre o ovo. Trata-se de um método muito sofisticado que o ovo tem de escapar às
pessoas que tentam entendê-lo.
O ovo é esquivo. Ele não
se deixa entender por inteiro. Ele se protege contra as tentativas da mente
humana de dissecá-lo. Se não fosse assim, ele não seria ovo, seria um objeto
qualquer. E o ovo é tudo, menos um objeto qualquer. Eu, se quiser entender um
pouco do ovo, vou ter que ter muita paciência. O ovo exige que a pessoa seja
extremamente paciente. Porque o ovo só se dá aos poucos, e nunca se dá
inteiramente. Por mais que eu me esforce, a maior parte dos fatos sobre o ovo
permanecerá sempre desconhecida para a humanidade.
IV
[ Revelações
sobre a relação de Vera Lia com o ovo ]
Eu estava agora mesmo
conversando no fumódromo. Mas tive que vir às pressas ao meu quarto, pois
recebi um chamado do ovo. Quando o ovo chama, é preciso atender imediatamente.
Receber um chamado do ovo
significa que a pessoa está em sintonia. Com o ovo? Não. Pois isso é impossível
para uma pessoa humana. Eu, portanto, não estou sintonizado com o ovo, mas com
uma série de circunstâncias que cercam a existência do ovo. Vera Lia é outra
pessoa sintonizada. Parece porém que ela tem sido extremamente negligente com
suas responsabilidades para com o ovo. Por exemplo: um dia desses, eu pedi a
Vera Lia que escrevesse um breve relatório sobre o ovo. Senti que ela estava
preparada para tal tarefa. Mas qual não foi a minha surpresa quando Vera Lia me
apresentou seu relatório. No começo, tudo ia bem. Ela falava sobre o ovo com
autoridade de uma iniciada. Mas eis que de repente ela começa a falar sobre a
galinha!
Tentei explicar a Vera
Lia que a galinha é uma mera depositária do ovo. O ovo usa a galinha como
disfarce. Ela é apenas a sacerdotisa do ovo e, no fundo, não tem importância
nenhuma. A galinha nem mesmo sabe ao certo se o ovo existe ou não. Ela viu o
ovo num sonho e achou que ele era Deus. Desde então, ela vive cacarejando uma
oração confusa dirigida ao ovo. Uma oração sem sentido nenhum. É apenas um
mantra que ela fica a vida toda repetindo: “có, cócó, có, cócócó”.
Tentei explicar tudo isso
a Vera Lia, mas ela não entendeu. Ou, o que é mais provável, fingiu que não
entendeu. Ficou me olhando por detrás dos óculos com aqueles olhinhos irônicos
enquanto eu proferia meu discurso. Quando acabei, ela apenas sorriu e disse:
“Vou tomar um café ali na Lúcia.” Isso me deixou tão enfurecido que fiquei sem
falar com Vera Lia por uma semana. Mentira. Eu só consegui ficar sem falar com
ela por duas horas.
E agora, só de raiva, vou
revelar tudo. O fato é que Vera Lia é uma agente do mais alto escalão. Ela se
faz de boba, mas sabe muito mais sobre o ovo do que eu jamais chegarei a saber.
Quando ela me apresentou seu relatório sobre a galinha, era só para me
despistar e, quem sabe, me provocar um pouco. Na verdade, Vera Lia já atingiu
um posto que não lhe exige mais que escreva relatórios. Ela já internalizou o
ovo. O ovo está dentro dela, e às vezes eu percebo como ela anda com cuidado
para não quebrá-lo. Aliás, com o dinheiro que anda recebendo por seu trabalho,
ela comprou ações na Brahma e está rica. Quer dizer, mais rica. A riqueza de
Vera Lia não é somente de dinheiro, mas é principalmente do ovo.
Eu vou tentar fazer com
que Vera Lia me revele algumas das coisas que sabe sobre o ovo, para com elas
enriquecer este relatório. Mas duvido que ela me conte o que quero saber. Se eu
perguntar, certamente vai ficar cacarejando sobre a galinha e não me contará
nada de relevante sobre o ovo. Se ela esquecer de novo seu maço de Parliament
na minha mesa de estudos, eu juro que jogo na privada e dou descarga.
V
[ O ovo e a
Filosofia ]
O ovo não é físico. Mas
ele também não é espiritual. O ovo não tem espírito. E o ovo não é místico, por
mais que os cristãos insistam que ele é um símbolo de vida e ressurreição. O
ovo não simboliza nada. O ovo não é um símbolo. O ovo é o ovo, sem simbologia.
Quem diz o contrário está longe de entender o ovo. Se bem que a melhor forma de
entender o ovo é não entendê-lo. Muitos filósofos já tentaram entender o ovo.
Mas é preciso dizer que nenhum deles foi bem sucedido. A seguir, relato o que
alguns filósofos importantes disseram sobre o ovo.
Platão achava que o ovo é
único ser do mundo sensível que não tem um correspondente no mundo inteligível.
Com isso, ele quis dizer que o ovo é um simulacro de si mesmo, isto é, uma
cópia da cópia de si mesmo.
Plotino argumentou que o
ovo está para Deus assim como Deus está para Sua própria divindade. Ninguém
nunca conseguiu entender o que ele quis dizer com isso.
Descartes, por sua vez, pôs em dúvida a
existência do ovo. Segundo ele, de todas as coisas duvidosas do mundo, o ovo
seria o mais duvidoso. Mas ele rapidamente abandonou essa ideia, pois logo após
ter afirmado “Penso, logo existo”, ele percebeu que o mais acertado
seria dizer “Ovo, logo existo.”
Kant dedicou ao ovo um
apêndice da Crítica da Razão Pura. Para ele, o ovo, juntamente com o
tempo e o espaço, é uma das condições a priori do conhecimento.
Schopenhauer, por sua
vez, postulou que o ovo não serve de representação aos desígnios da Vontade.
Ele é representação pura. Diz ele: “O ovo parece ser o resultado de um quase
inacreditável desencontro entre o plano da representação e o plano da Vontade.
O ovo é aquele que escapa: escapando de ser representação, deixa de estar
subjugado à Vontade.” Mais tarde, o próprio Schopenhauer renegou essa tese
como absurda e declarou que desistira de entender o ovo. “O ovo é
ontologicamente incompreensível.” - resumiu o filósofo.
Nietzsche aparentemente
não deu muita importância ao ovo em sua obra. Porém, no ano passado uma
pesquisadora húngara do Arquivos Nietzsche, na cidade alemã de Weimar, anunciou
ter descoberto uma longa série de aforismos de Nietzsche sobre o ovo que nunca
vieram à luz. Ainda não se sabe ao certo qual o conteúdo de tal material. A
estudiosa responsável pela descoberta declarou à imprensa que os aforismos
datam de 1873, época da redação de Humano, demasiado humano. A intenção
de Nietzsche seria publicá-los como apêndice à obra citada, sob o título de Ovo,
demasiado ovo. A pesquisadora revelou ainda que o cerne das reflexões de
Nietzsche consiste em tomar o ovo como um dispositivo crítico na tarefa de
transvaloração dos valores e desconstrução da metafísica ocidental de origem
platônica.
No século XX, Martin
Heidegger considera o ovo como a expressão mais direta do Dasein
(ser-aí). Através do ovo, o ser-enquanto-ser permaneceria indissoluvelmente
ligado ao ente-enquanto-ente.
Freud entende o ovo como
um componente fundamental do complexo de castração. Para a criança, a ausência
de testículos (popularmente “ovos”) na mãe gera a fantasia de que a mãe foi castrada
pelo pai. Caso não reprima seu desejo sexual pela mãe, a criança conclui que
será igualmente castrada pelo agente paterno e ficará como a mãe, sem pênis e
sem testículos. Quando nesse estágio a repressão não se dá de forma eficiente,
o adulto apresentará, de forma moderada ou grave, fetichismo pelo ovo ou por
objetos ovóides, certamente associado a sintomas de neurose obsessiva. Em casos
mais raros, na hipótese de que o ego não consiga se proteger das exigências
instintuais mal reprimidas do id, parte do contato do ego com a realidade é
abolido, dando origem ao que Freud chama de “psicose ovóide”.
Eu espero que esse breve
panorama seja capaz de fornecer ao leitor uma ideia geral do percurso do ovo na
história do pensamento ocidental. Vários outros pensadores de nosso tempo
tomaram o ovo como objeto de investigação filosófica: Jung, Lacan, Sartre,
Foucault, Deleuze, Derrida, Barthes, Baudrillard, entre muitos outros.
Contudo, como foi dito no
início, nenhum deles logrou resolver por completo o mistério do ovo. As
contribuições mais significativas são as de Freud e, muito possivelmente, a de
Nietzsche. Quanto aos outros, lamento dizer que nem chegaram a roçar a casca do
ovo. Apesar de todos os esforços da cultura, o ovo continua irremediavelmente
indecifrável.
VI
[ A epifania
de Vera Lia ]
O ovo não tem um em-si. A
presença do ovo só se revela em sua ausência. O ovo presente não é importante.
O que mais importa é o ovo ausente. Pois somente em sua ausência pode-se sentir
a força inexplicável de sua presença. Sei que essas coisas que estou escrevendo
podem ser difíceis demais de entender para quem nunca teve contato com o ovo.
Mas estou tentando ser o mais claro possível. Para tornar as coisas mais fáceis
ao leitor, vou dar um exemplo. É um exemplo simples, mas muito ilustrativo.
Hoje, enquanto eu tecia
meu cachecol na T.O., Vera Lia, que também é uma agente do ovo, se aproximou de
mim e perguntou: “E depois?” Somente isso – “E depois?” Eu soube imediatamente
que ela estava se referindo ao ovo. Como o leitor pôde notar, ela não mencionou
o ovo. O ovo aparentemente estava ausente de sua fala. Mas só aparentemente.
Porque na realidade ele estava presente em seu máximo grau. A melhor forma de
falar do ovo é não falar a respeito dele. A melhor forma de se lembrar do ovo é
esquecê-lo. Vera Lia sabe disso muito bem. Por isso, como resposta à sua
pergunta, apenas olhei para ela sem dizer uma palavra. Ela entendeu e se deu
por satisfeita. Ela compreendeu que o silêncio era a melhor resposta naquele
caso. Agora, eu descobri porque Vera Lia fala tanto sobre a galinha, ao invés
de falar sobre o ovo. É porque ao falar sobre a galinha, que nada tem a ver com
o ovo, ela está secretamente e mais do que nunca falando sobre o ovo.
Agora, vou dar um outro
exemplo. Para que fique definitivamente claro ao leitor que a ausência do ovo é
a forma mais forte de sua presença. Há alguns dias, Vera Lia me contou que
durante sua licença terapêutica visitou um galinheiro, que é o lugar onde as
galinhas ficam reunidas. Ela relatou-me que entrou no galinheiro e, num gesto
mecânico, foi logo à procura do ovo. Porém, por mais que ela procurasse, não
encontrou nenhum. Intrigada, ela seguiu procurando. Pensou que talvez o ovo
estivesse se escondendo dela por alguma razão misteriosa. Mas sua busca foi
inútil. Não havia um ovo sequer em todo o galinheiro. Vera Lia relatou-me que
foi nesse momento que ela teve uma espécie de insight ou, como ela mesmo
disse, uma “iluminação”. Ela compreendeu subitamente que a ausência do ovo no
galinheiro, lugar onde tradicionalmente ele deveria estar, é a prova mais exata
de sua incomparável presença. Um galinheiro onde não exista nenhum ovo é o
sinal mais evidente da presença irremediável do ovo. Nenhum outro sinal poderia
ser mais claro do que esse.
Vera Lia me disse que
saiu transformada dessa experiência no galinheiro. Todo o seu entendimento
sobre o ovo sofreu depois disso uma reviravolta radical. Na verdade, o que Vera
Lia experimentou em meio às galinhas é chamado pelos místicos de “epifania”,
que é quando uma pessoa compreende repentinamente algo muito importante sobre o
mundo. A palavra “epifania” vem do grego ephinaneia, que significa
“aparição” ou “manifestação”. No caso de Vera Lia, seria mais acertado dizer
que ela passou por uma “ovofania”, isto é, uma revelação do mistério do ovo.
Espero que esses dois exemplos tenham
esclarecido o leitor a respeito da ideia que apresentei no início dessa seção.
Se for esse o caso, já podemos avançar para a próxima parte deste relatório.
Ainda falta muita coisa a dizer sobre o ovo.
VII
O ovo é fundamentalmente
uma entidade múltipla. Há várias faces do ovo que ele não revela, mas que a
nós, agentes do ovo, se mostram particularmente nítidas. Vou agora falar de
algumas faces do ovo.
O ovo pode ser extremamente
destrutivo. Na Segunda Guerra Mundial, se os americanos tivessem lançado sobre
Hiroshima e Nagasaki, ao invés da bomba atômica, um ovo, o estrago teria sido
dez mil vezes maior.
O ovo é profético. Se
alguém está distraído e de repente vê o ovo, é sinal de que a pessoa está
predestinada. Uma vez, uma mulher estava tricotando e viu o ovo. Levantou-se
assustada, pois não se lembrava de ter posto um ovo ali na mesa de costura. Mas
o caso não era para sustos. O ovo apenas queria dizer que ela iria fazer uma viagem
e que estava vivendo o período mais feliz de sua vida.
E há histórias curiosas.
Certa vez, um homem estava desejando muito uma mulher. Estava, aliás, indo em
busca dela quando ovo apareceu no meio da rua. Flutuando calmamente no espaço.
O homem, àquela altura, não deu muita importância ao ovo, porque estava
preocupado demais com a mulher. Mas eis que ao chegar à casa da mulher, esta
estava com um amigo. Os dois conversavam enquanto bebericavam chá. O homem, no
mesmo instante, ao ver aquela cena, esqueceu completamente a mulher. E passou a
nutrir uma paixão aguda pelo amigo dela. Não sei como o caso terminou. Mas a
influência do ovo sobre esse homem deve ter sido muito forte.
O homem, inclusive, nunca
na vida havia se interessado por outro homem. Aquela foi a primeira vez. O ovo
é sempre a primeira vez. Talvez já existisse dentro do homem, sem que ele
soubesse, uma semente do amor por outro homem. Sob a influência do ovo, a
semente germinou, a planta cresceu e dela desabrochou uma inesperada flor. Uma
flor exótica e misteriosa, que só se abre quando dois homens estão se amando.
Todo esse processo, que
poderia levar a vida toda do homem, durou apenas alguns minutos. Porque o ovo
se fez presente. Bastou que o homem olhasse por um único instante o amigo da
mulher para saber que era ele quem amava, e não a mulher. Mas a mulher não
ficou chateada. Com um gesto gracioso, abençoou a união dos dois e
discretamente se retirou para deixar que eles conversassem. O ovo tem dessas
coisas. Ele pode insuflar o amor. Mas há também casos de morte. Peço ao leitor
que for muito sensível que pule essa parte do relatório.
Eu vou dizer uma coisa
que vai soar agressiva, mas que veio a mim através do ovo. Por isso não posso
silenciar. É o seguinte: ser católico é uma coisa indecente. O ovo não esquece
nunca, mas os católicos aparentemente “esquecem” que há não muito tempo a
Igreja Católica torturou, encarcerou e assassinou centenas de milhares de
pessoas por intermédio do Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido como Inquisição.
A Igreja Católica é a
instituição mais perversa criada pelo ser humano. Ela inventou a noção de
“pecado”. Nenhuma outra noção humana gerou uma quantidade tão grande de
sofrimento, através dos séculos, como essa que o “pecado” gerou. Quando à
Inquisição, ouvi dizer que esses dias o papa se “desculpou” perante a
humanidade pelos crimes da Igreja. Ah, ele se “desculpou”! Quanto amor
cristão há nesse pedido de desculpas!
Vamos então imaginar uma
cena: digamos que primeiro você encarcera uma pessoa numa masmorra escura e
fétida por dez anos. Passado esse tempo, você tortura a pessoa por meses com os
mais finos requintes de crueldade. Depois disso, você resolve matar a pessoa e
faz com que ela mergulhe em óleo fervente ou queima a pessoa viva. Digamos que
então, no futuro, você tem a oportunidade de se encontrar com a tal pessoa e
diz assim: “Olha, eu estou um pouco arrependido, sabe? Eu te encarcerei, te
torturei e depois lancei você no meio de uma fogueira onde você morreu
queimando lentamente. Você me desculpa?”
Eu começo a falar da
Igreja Católica e, imediatamente sinto uma espécie de enjôo, um nojo, um asco.
Como se eu estivesse lidando com excrementos frescos ou com carne putrefata.
Por isso, vou voltar ao ovo. Isso foi só um desabafo. Afinal, de tempos em
tempos, alguém tem que dizer essas coisas. Porque se ninguém disser, de tão
horríveis, fica parecendo que elas nunca aconteceram.
Escrever isso me deixou
exausto. Vou dormir e amanhã bem cedo escreverei algo brilhante sobre o ovo.
Boa noite, ovo. Eu sei que você não dorme, mas mesmo assim boa noite. Até
amanhã, ovo. Vou dedicar o dia de amanhã exclusivamente ao ovo. Como uma
compensação por ter contaminado o relatório com essa história de católicos. Eu
viverei o dia de amanhã dentro da luz cristalina do ovo. E assim, espero me
purificar do lixo que acabei de escrever, apesar de esse lixo ser a mais pura
verdade. O ovo não liga para a mais pura verdade. Ele tem coisas mais
importantes a fazer.
Ovo, eu peço que você
tenha um pouco de paciência e espere enquanto eu durmo para que amanhã eu
acorde renovado e seja capaz de escrever sobre a sua glória. Prometo que não
escrevo mais sobre coisas imundas. Agora vou mesmo. Boa noite, ovo. Até
amanhã. Não se pode dizer “até amanhã” ao ovo, porque o ovo é sempre hoje. Ovo,
perdoe minha falha humana. E ovo, cuide de mim enquanto eu durmo, para que eu
não sonhe com fogueiras e crucificações. Ovo, eu queria mesmo era sonhar com
você. Um sonho assim: só o ovo. Boa noite, ovo. Tente descansar um pouco de ser
o ovo. Aqui vou eu.
VIII
O ovo é um dispositivo
aberto. Embora o ovo pareça fechado em si mesmo, ele é aberto para o mundo e
para a vida. Isso não quer dizer que o ovo seja bonzinho. A vida do ovo também
compreende a morte. As pessoas evitam falar da morte, assim como evitam falar
do ovo.
Um dia desses, eu e Vera
Lia discutíamos alguns tópicos importantes sobre o ovo no convívio. Havia
pessoas ao redor. Eu percebi, pelo olhar das pessoas, que elas estavam
incomodadas com a discussão, embora nenhuma delas tenha expressado isso com
palavras. Era evidente que o ovo estava causando um mal estar. Algumas das
pessoas até mesmo se afastaram dali, com o olhar transtornado. Outras ficaram e
mesmo angustiadas tentavam entender o que estava sendo dito. Percebendo isso,
eu e Vera Lia baixamos o tom de voz, de modo que a pessoas interessadas se
aproximaram de nós e esticaram o pescoço no intuito de captar alguma palavra.
Mas nesse ponto a discussão sobre o ovo já se encerrara. Quando as pessoas
perceberam que eu e Vera Lia já não falávamos mais do ovo, retiraram-se
cabisbaixas, murmurando entredentes: “Esses dois são completamente malucos.” Esse é um exemplo de como o ovo pode
provocar um grande desconforto em quem não está preparado para ele.
Uma vez, um agente, sem
perceber, deixou cair um de seus relatórios sobre o ovo na calçada. Foi num
bairro chique do Rio de Janeiro. Uma madame que passeava com seu poodle
achou o relatório e o leu, ali mesmo na calçada. Era um relatório
ultra-confidencial. Caiu desmaiada assim que acabou de ler. Foi hospitalizada
em coma profundo. A mulher não foi capaz de suportar o poder terrificante do
ovo.
Outro caso interessante
foi o do praticante de Yoga que escolheu o ovo como objeto de concentração
enquanto meditava. Má escolha, má escolha. Concentrar-se no ovo pode ser
extremamente perigoso. Dizem que o praticante nunca mais conseguiu sair do
estado de meditação. Ele desde então fica em sua esteira, sentado em posição de
lótus, repetindo um mantra que não é OM, mas OVO. O mais provável é que este
praticante, de tanto meditar, acabe em pouco tempo atingindo a iluminação. Será
o primeiro Buda do ovo. O ovo búdico é um dos objetos mais sagrados do Oriente.
Estou tentando escrever
coisas importantes sobre o ovo, mas estou sofrendo. O que eu queria mesmo é
escrever um poema de amor. Um poema tão triste, tão aflito, tão sentido, que só
de pensar nele meus olhos se enchem de lágrimas:
“Tu, que te foste, e aqui me deixaste sem ti,
e aqui me deixaste tão só, sem teus olhos,
sem teu brilho – eu, que agora ando no escuro
em busca de um vestígio teu, qualquer vestígio,
quem sabe um pouco do teu cheiro que ficou
parado no ar do quarto onde conversávamos,
quem sabe um rabisco teu, que fizeste quando
me explicavas sobre a arte de fundir os metais.
Tu, que te foste, e levaste contigo meu coração,
tu, que levaste a minha alma – eu, que me recolho
sem ti em qualquer canto e sofro a dor de ter que
pertencer a um espaço sem ti, um tempo sem ti,
as estrelas que brilham sem ti, tão longínquas,
como tu és longínquo em relação a mim.
Tu, que brilhas ainda que estejas ausente:
tu brilhas dentro aqui – bem, bem dentro aqui.”
O ovo consentiu que eu
escrevesse um poema piegas. Obrigado, ovo. Já me sinto bem melhor. Para
terminar essa seção, vou contar mais uma história que tem a ver com o ovo. É
assim: “Era uma vez o ovo. O ovo estava imóvel. Alguém passou por ele e
disse: “Boa tarde, ovo.” O ovo não respondeu. Só pensou: “Rá!” E continuou
imóvel. Continuou sendo o ovo por muito tempo. Aliás, por muitíssimo tempo.
Fim.”
Essa é a história. Parece
banal, mas nela está contida toda a sabedoria do ovo. Se você não conseguiu
entender, leia de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Até entender.
Alguns são, outros não.
Eu sou. Vera Lia também é. O faraó Tutankhâmon não era. Cristo era, Freud era.
A moça que limpa o meu quarto é. Minha psicóloga também é. Uma das secretária
é, as outras duas não.
Ovo, eu acho que
finalmente estou entendendo. Entendendo o ovo? Não. Então, entendendo o que? O
que, meu Deus? O que?
IX
[ O ovo e a lógica aristotélica ]
O ovo é nem mais nem
menos. O ovo é a coisa mais simples de entender e ao mesmo tempo a mais
complexa. Os cientistas dizem que o cérebro humano é o objeto mais complexo do
universo. Estão enganados: é o ovo. Na Revolução Francesa o ovo desempenhou uma
papel fundamental, pois a guilhotina foi projetada segundo um modelo ovóide.
“Ovóide” quer dizer “aquilo ou aquele que tem a forma do ovo.” Isto, porém,
está errado. Pois nada ou ninguém pode ser comparado ao ovo de uma maneira tão
direta. O ovo, aliás, não admite comparações. Quem se compara ao ovo está
incorrendo num erro muito grave.
O ovo é o instante-já.
Quando se tenta compreender o instante-já, ele já passou, já se tornou um
instante-foi. Assim também acontece com o ovo: o ovo-já é inapreensível e
inexplicável. Pode-se apenas tentar compreender o ovo-foi. E mesmo isso com
muita dificuldade. Quando uma pessoa pensa no ovo e tenta dizer alguma coisa
sobre ele, ele já passou. A pessoa perde ovo no mesmo instante em que pensou
tê-lo conquistado. É como diz Clarice Lispector em seu relatório: “Ovo visto, ovo perdido.”
Apesar de ser
inalcançável, o ovo continua se oferecendo em uma série de instantes-já que
nunca acabam. Uma das estratégias mais sofisticadas do ovo é estar sempre
oferecendo uma nova oportunidade de entendê-lo, mas invalidando essa
oportunidade no mesmo instante em que a oferece. Por isso tudo, só se pode
pensar sobre o passado do ovo. Pensar sobre o seu presente não é executável pela
mente humana.
Quanto ao futuro do ovo,
é um tema dificílimo. Eu não quero falar sobre o futuro do ovo. Embora Vera Lia
tenha insistido várias vezes para que eu falasse sobre esse tema, prefiro me
calar. Porque o futuro do ovo é tão enigmático que qualquer coisa que eu diga a
esse respeito soará como um ataque às leis mais básicas da lógica aristotélica.
Veja-se o seguinte
exemplo, que vou dar apenas a título de ilustração. Para Aristóteles,
“silogismo” é um raciocínio dedutivo estruturado a partir de duas proposições
(premissas), das quais se obtém uma terceira (conclusão). Assim:
Premissa 1: Sócrates é humano.
Premissa 2: Todos os humanos são mortais.
Conclusão: Logo, Sócrates é mortal.
Até aí, tudo parece muito claro e fácil de entender. Porém, basta que o
ovo entre em cena para que as coisas comecem a ficar mais complicadas ou até
mesmo incompreensíveis. Como o ovo não respeita as leis da lógica, se alguém
tentar montar um silogismo com o ovo, o resultado será perfeitamente absurdo,
capaz de botar o próprio Aristóteles de cabelo em pé. Seria algo deste gênero:
Premissa 1: O ovo é o ovo.
Premissa 2: Todos os ovos são o ovo.
Conclusão: Logo, o ovo é o ovo.
Ou ainda:
Premissa 1: O ovo é uma nuvem.
Premissa 2: Nem todas as nuvens são o ovo.
Conclusão: Logo, meu sapato está apertado demais.
Ou, por fim, mais radicalmente:
Premissa 1: O ovo é um guindaste.
Premissa 2: Dentro da névoa, há pessoas imóveis a esperar.
Conclusão: A esperar o que? O que?
Como espero ter
demonstrado com esses exemplos, o ovo é imune à lógica aristotélica. O ovo tem
sua própria lógica. A única forma de pensamento humano que guarda certa
semelhança com o ovo é o Zen. Mas não vou falar da relação da relação entre o
Zen e o ovo. Seu começasse a falar disso, este relatório acabaria com cem mil
páginas.
Estou tentando escrever
de forma simples, para que todos possam entender pelo menos um pouco do ovo.
Mas, pensando bem, isto de “entender um pouco do ovo” não é possível. Ou a
pessoa entende o ovo ou não entende, sem meio termo. É como quando uma mulher
está grávida. Ou ela está grávida ou não está. Nunca se teve notícia de uma
mulher mais ou menos grávida ou ligeiramente grávida. Assim é com o ovo. Neste
sentido, o ovo é totalitário. Ou é o ovo total ou é nada de ovo. Não há ovo pela
metade. Há somente o ovo completo.
Querer dividir o ovo
seria como querer dividir o nada, de forma que dessa divisão resultassem dois
nadas distintos. Mas isto é impossível. Pois para que existam dois nadas
distintos é necessário que alguma coisa os separe. E se “alguma coisa” existe,
já não se pode falar em “nada”.
Estou procurando ser
claro, mas vejo que eu mesmo estou me confundindo. Vou agora tomar meu
“se-necessário”. E depois vou me banhar luz cristalina do ovo. A luminosidade
divinatória. Adeus por enquanto, ovo. Logo voltaremos a nos encontrar. Antes de
escrever a última parte deste relatório preciso me purificar. Pois só dos puros
é o Reino do Ovo. Amém, ovo. Auf wiedersehen, Ei. Fareweel, egg. Au revoir,
oeuf. Hasta la vista, uevo.
X
[ Última parte: o transe hipnótico do ovo ]
O relatório está chegando
ao fim. Graças ao ovo? Não, graças a mim, que sou o seu fiel escriturário. Esta
última seção é a mais difícil de todas. Tanto para o leitor quanto para mim, o
devotado escriba do ovo. Acho que escrevi tanto sobre o ovo que fiquei como que
intoxicado por ele. Até aqui, tentei manter certa sobriedade em relação ao ovo,
mas isso já não é possível. A intoxicação do ovo é suave, mas também é
violenta. Vou pedir perdão aos leitores se eu escrever algo de ofensivo ou
obsceno. Talvez eu nem escreva, mas se eu escrever o perdão já fica garantido.
Estou entrando em transe
hipnótico induzido pelo ovo. Já não posso me responsabilizar pelas coisas que
estou prestes a dizer. Há tantas coisas que eu ainda queria contar sobre o ovo.
Mas agora já não há mais tempo. Adeus, mundo. Estou indo para o ovo. Dessa
viagem ninguém jamais retornou.
[ Nota da Equipe Médica do Ovo (EMO): A
seguinte passagem foi produzida pelo agente em estado de transe. Nós, da Equipe
Médica do Ovo transcrevemos fielmente tudo o que o agente disse enquanto durou
o transe. Grunhidos e palavras incompreensíveis foram suprimidos. Os sinais
vitais do agente foram monitorados durante a experiência. Em duas ou três
ocasiões, o agente mostrou-se agitado. Tudo indicava que estava à beira de uma
crise convulsiva que felizmente não aconteceu. A seguir, a transcrição exata
das palavras do agente durante o estado de transe. ]
Transcrição
“Eu? Eu sou o ovo? Não,
eu não sou o ovo, apesar de sê-lo num nível mais profundo. Onde está o ovo? Não
sei. O ovo deve estar em toda parte. Preciso confessar uma coisa: eu amo o
ovo. Mas... o ovo não me ama. Se eu soubesse apenas como obter uma
partícula do amor do ovo... [ Lágrimas do agente ] Eu me ajoelharia aos
pés do ovo e declararia a imensidão e a urgência do meu... amor? O nome do ovo
começa com a letra D.
Ah, estou tão cansado...
Eu vou atravessar o rio do esquecimento que conduz ao Hades. O rio dos mortos.
[ Cessam as lágrimas do agente ] Nas margens, vejo o vulto dos
enforcados pendendo dos galhos raquíticos. Caronte já espera na barca. Entrego
a ele o óbulo. As águas do rio são tão viscosas, como sangue coagulado.
Uma vez, eu matei uma galinha. Não acertei
direito o golpe. Ela saiu dançando com a cabeça pendurada. Era a dança do ovo.
Esguichando sangue pelo pescoço. Oh, sangue, sangue de novo. Por que tanto
sangue? Quando me lembro dele – não do ovo, mas dele – uma gota de
sangue negro escorre do meu coração. Aliás, o que estou dizendo aqui é pura
magia negra. Porque o diabo é forte. Porque o diabo é forte. Posso ver os
cascos dele fazendo riscos no chão seco. O ovo passa sobre nós como um abutre.
O céu é tão vermelho. Estou ouvindo um canto fúnebre. Alguém teve uma morte
violenta. O ovo-abutre emite guinchos: uma ladainha demoníaca. A morte é tão
doce, ovo. O inferno é tão doce. Basta mergulhar a lâmina no lugar certo.
Porque o ovo não admite arma de fogo.
Na floresta, há um grupo
de diabos seminus que dançam ao redor do Grande Ovo. Os peitorais são largos,
as pernas são potentes, os diabos são extremamente másculos. [ O agente está
visivelmente excitado ] E os diabos gargalham em uníssono e entoam em
louvor do grande ovo um hino polifônico e cáustico. Alguns deles se afastam em
pares rumo às partes mais escuras da floresta. E os gemidos, e as súplicas, e
as veias saltadas no pescoço quando o interior de um se abre à febre violenta
do outro: mais, mais, mais, mais fundo. A floresta arde de alegria e dor, as
árvores pulsam e a seiva escorre dos lábios e fecunda o chão. E o escárnio, ah,
o escárnio é a febre do Grande Ovo. O ídolo orgiástico.
Mas agora a música parou.
Aqueles que estiveram juntos retornam dos fundos da floresta: vêm tão leves,
tão pacificados. Não, não são mais diabos. Estão transfigurados, pálidos. O
Grande Ovo espalha pelos arredores uma luz difusa. Tudo é tão arcaico. O Grande
Ovo é tão incendiário.
Eu vejo o Grande Ovo
subindo até a estratosfera e espalhando suas garras sobre a Terra. É um grande
polvo de mil e um tentáculos que vão lentamente dominando a Jônia, a Etrúria, a
Tessália, a Macedônia, a Anatólia, a Trácia, a Frígia, a Ligúria. Não há
limites para o voraz expansionismo do ovo-polvo.
Na Grécia, o ovo se
encontra com um grupo de bacantes que dançam em louvor a Dioniso. Quando elas
veem o ovo, começam a dançar furiosamente, como se o ovo fosse um sinal do
deus. Mas o ovo, a essa altura, já deixou de ser um sinal. O ovo é
fosforescente. E está aberto sobre os pântanos, sobre os matagais. Ele voa sem
precisar de um tapete mágico.
Eu olho para o ovo e
percebo que ele tem algo a dizer. O ovo nunca disse nada. Nunca foi necessário.
Mas agora há uma urgência de extravasamento que o ovo já não pode conter. Ele,
que sempre se mostrou tão magnânimo, tão senhor de si. Ele, que sempre foi tão
prepotente. O ovo, que julgávamos ser o herói inescrutável, agora precisa
falar. Será uma súplica? Será uma confissão? Será um desabafo? Ainda não
sabemos. Ele começa assim:
“Vocês. Mortais. Eu me
apresento: sou o ovo. Ninguém chega ao Pai senão por mim. Muito menos vocês –
os perecíveis. Eu instituo a Lei. Vocês não conhecem a Lei do ovo. Mas devem
segui-la assim mesmo. Eu desci do céu e vim habitar entre vocês. Para que vocês
saibam o que significa a palavra “existência”. Mas vocês não sabem. Não por
incompetência minha. Mas porque vocês são burros. Vocês são burros, chatos,
feios e não morrem nunca. Ou melhor. Morrem. E bem rápido.
Apesar da estupidez que
vocês demonstram em relação a mim, eu acabei me afeiçoando a vocês. Porque
vocês são tão nulos, tão irrisórios, tão transitórios. Vocês são
insignificantes. E o que eu gosto em vocês é que vocês não se conformam com
essa insignificância. Vocês são artistas: para combater a dor que a
insignificância causa, vocês inventam magníficos castelos no vácuo. Vocês têm
um poder tão grande de fantasiar que me deixa até comovido.
Veja só – vocês foram até
mesmo capaz de inventar um outro mundo além desse em que vivem! Quem é capaz de
inventar um mundo merece alguma consideração. Mesmo que esse mundo não passe,
como é o caso, de um belo delírio. Além disso, vocês creem que são especiais,
que são importantes, que uma Providência benevolente cuida de vocês. Vocês que
estão aptos a vencer a morte. Ah, vencer a morte! Ahahahahaha! Perdão. Minha
intenção não é zombar de vocês. Eu quero mesmo é elogiá-los. Pois de tudo que
vocês, artistas, criaram, há algo simplesmente genial. Você s foram capaz de
inventar – Deus! Estou falando sério. De todas as coisas inimagináveis, vocês
inventaram a mais inimaginável – Deus! Não importa que o Deus que vocês
criaram, hoje em dia esteja morrendo. Em alguns círculos, ele nem se chama mais
Deus, mas adotou o nome meio envergonhado de “Poder Superior” ou “energia
cósmica”. Mas isso não importa. O que importa é a invenção em si. A invenção é
a arte que vocês magistralmente dominam. Por isso, eu, o ovo, desenvolvi uma
certa admiração por vocês. Vocês são mestres em sonhar acordados. A vida de
vocês se parece mais com um sonho do que um sonho se parece com ele mesmo.
E para vocês, parar de
sonhar pode ser incrivelmente perigoso. Pois se muitos de vocês pararem de
sonhar e acordarem, é provável que queiram acordar também os outros que
continuaram a dormir. E se vocês acordarem, vão perceber que a realidade nada
tem a ver com o que vocês sonharam. E isso pode ser catastrófico. Aplicar um
choque de realidade em quem passou a vida inteira sonhando é certamente fatal
para o sonhador. Se vocês acordarem, tudo o que vocês laboriosamente
construíram durante milênios de civilização será derrubado. Todas as palavras
em que vocês acreditam hoje perderão o sentido e voltarão a ser o que eram no
início: somente sons articulados. Todos os poderosíssimos ídolos em que hoje
vocês depositam sua fé serão reduzidos a pó. Isso provavelmente gerará um furor
global de morte e suicídio. Será como um apocalipse. Mas, depois de tudo,
quando o pior já houver passado, os sobreviventes hão de experimentar um
maravilhoso sentimento de liberdade. O mar estará novamente aberto para vocês.
Vocês provavelmente nunca viram tanto mar aberto. A aventura voltará a ser
possível. A vida voltará a ser possível.
Eu sou o ovo. E esta é minha mensagem para vocês. Devo agora deixá-los.
Vocês devem decidir por si mesmos se querem continuar sonhando ou se querem
acordar. Somente aqueles que estão acordados veem o ovo. [ O agente
vagarosamente desperta do transe hipnótico ]
Fim da transcrição
***
Este relatório chegou ao
fim. O ovo continua sendo ele mesmo. Os relatórios que os agentes escrevem não
alteram em nada a existência do ovo. O ovo pode alterar a existência das
pessoas que entram em contato com ele. Mas o ovo mesmo é inalterável. Se alguém
tenta alterar o ovo, é capaz que acabe se alterando a si mesmo. Para melhor ou
para pior. Nunca se sabe. Porque o ovo é imprevisível. Inalterável e
imprevisível. O ovo gosta muito de paradoxo.
Agradeço à agente Vera
Lia, que teve a heroica paciência de ouvir cada trecho deste relatório enquanto
ele ia sendo redigido. Vera Lia, como o leitor pôde perceber, serviu de
magnífica inspiração a vários trechos deste relatório. Sem Vera Lia e sua
imaginação prodigiosamente brilhante, este relatório não existiria.
Quanto ao ovo, vou
deixá-lo em paz por algum tempo. Ou melhor: é o ovo que vai me deixar em paz.
Ovo, faça em mim segundo a tua vontade. Pai, afasta de mim este ovo. Ovo, por
que me abandonaste? Eu e o ovo somos um. O ovo é o caminho, a verdade e a vida.
Ovo, não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei
salvo. E finalmente: Ovo, em tuas mãos entrego meu espírito.
FIM.
Tudo o que escrevi é verdade e existe.
FIM.
OVO.
E agora: FIM.