Mas
como persistir na poesia
se já
não há quem ouça o canto?
E se nem
mesmo sabes o que cantar
e se o
canto te sai torto e amargo?
E se nem
te lembras mais o que é “poesia”,
se o
próprio mundo já não quer saber,
se as
coisas do mundo se recusam?
Não te
cansas nunca de cantar sem ser ouvido?
Não te
ressentes nunca da aridez do entorno?
Até
quando serás imune à indiferença?
Onde teu
orgulho, tua ira, teu desprezo?
Onde a
tua impaciência?
Serás
tu um espantalho ou tens sangue?
E talvez
já não exista razão para cantar.
E talvez
já não haja o que cantar.
E talvez
já nem haja mais aquilo que se chama “canto”.
(E
certamente virão a ti outros poetas,
se ainda
houver algum que conheças,
alguns
virão cegos, outros em frangalhos,
virão
como fantasmas, com mortalhas,
e
tentarão te persuadir, te alegrar,
combaterão
com eloquência o teu fastio,
dizendo
que tens que prosseguir,
que é
preciso que sejas forte,
que a
poesia deve resistir,
que a
poesia é o que dá sentido,
que
desistir da poesia é desistir da vida.
E te
verás entediado em meio deles.
E talvez
diga a eles algumas palavras amargas,
ou
ofereça a eles o teu melhor sarcasmo.
Pois
embora tal discurso seja belo
e embora
concordes com o que dizem,
tu sabes
, como eles mesmo o sabem,
que nada
daquilo faz sentido algum,
a não
ser dentro daquele estrito círculo.)
O peso
das coisas, as lufadas da manhã,
as dores
do corpo e as saliências do corpo:
serão
ainda objeto da poesia?
E se não
houver mais objeto no mundo
e à
poesia nada mais reste senão cantar sobre si mesma,
e se não
houver mais objeto possível senão o próprio canto?
E se a
dor, a época sombria, os desmandos,
o repuxo
do tempo, o ir-e-vir das coisas,
e se
nada disso puder volver-se em poesia?
Ou pior:
se o mundo se recusar, afastando
com um
gesto rude o verso, se o verso for
rompido,
violentado ou pior – ignorado, suspenso?
Canta o
silêncio.
Canta
a sombra.
Canta
o nada, se for preciso.
Pois
para ti, infame, já não é possível parar de cantar.
Achas
que pode decidir sobre as coisas da poesia?
É antes,
a poesia que decide sobre ti: tu és apenas um servo.
Então,
continuarás cantando.
Não
porque queiras ou porque tenhas assim decidido.
Algo que
não conheces decidiu por ti.
Porém,
não sejas ingênuo;
poupa-te
a ti mesmo de ser tolo
e
reconhece o óbvio e explícito:
o mundo
em que vives já não quer teu canto,
o mundo
já nem sabe do que te ocupas,
o mundo
tem em vista outros interesses,
dos mais
úteis, mais rentáveis.
E estás
condenado ao desprezo
e o teu
canto não será ouvido
e tudo o
que fizeres – todo teu labor,
todo o
teu sangue, toda a alegria do
teu
canto e toda dor que ali condensas,
e o sumo
das coisas que ali injetas,
e o giro
de tudo que ali cristalizas
– será
tudo em vão.
E se te
jogares de um alto edifício
não
sentirão falta de ti nem do canto.
Ou se te
retirares para longe
ninguém
perceberá a tua ausência.
Pois o
teu canto precioso
será
desmantelado pelo vento, pelo tempo.
E o teu
corpo será corroído.
E assim
como acontece a tudo e todos,
tu serás
sugado pelo funil do esquecimento,
tu e o
teu canto, ambos já em pedaços.
E só
quando houver cessado o teu canto
e embora
já nada sintas,
e embora
já nem mesmo existas
– só,
ali, então, conhecerás - paz.