segunda-feira, 31 de maio de 2010

Voices.


  VOICES II
  
 Uma experiência sonora.





Um poema de Federico Garcia Lorca.



O AMOR DORME NO PEITO DO POETA

Tu nunca entenderás quanto te quero
porque vives em mim, adormecido.
Por vozes de aço agudo perseguido,
dentro de mim, em pranto, eu te encarcero.

Norma que agita igual carne e luzeiro
traspassa já meu peito dolorido
E as túbidas palavras têm mordido
as asas de teu ânimo severo.

Nos jardins gente aguarda entre boninas
teu corpo e minha angústia, a toda brida
em cavalos de luz e verdes crinas.

Continua a dormir, tu, minha vida.
Ouve meu sangue roto em notas finas!
Olha que nos espreitam sem medida!

GARCÍA LORCA, Federico. Sonetos do amor obscuro e Divã do Tamarit. Tradução de Afonso Félix de Sousa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 41.

sábado, 8 de maio de 2010

Sobre a Morte.


Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja  um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a idéia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso. 

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A Cidade e os Frutos.



Habitam a cidade.
São carne e dor,
Estão vivos, são macios,
São corpos, são dóceis,
Mas perecíveis.

A cidade é o lugar onde habitam.
O circo onde enjaulados conduzem o espetáculo.
A cena onde exaustos representam alguma
Obscura peça.

E não há diretor que os guie;
Não há roteiro que os oriente;
E não há público algum que os aplauda.
Nada ali os acalenta:
Estão sós, embora sejam muitos.
E são frágeis: quando pulam de edifícios,
Ouve-se na calçada um baque surdo, severo.

Habitam a cidade.
São carne, ossos, coração e sangue.
Estão vivos, mas não por muito tempo.
Logo que morrem, são transportados
Ao lugar propício onde cada corpo
É minuciosamente devorado, em silêncio.

Mas por enquanto vivem, como pássaros vivem,
Esquecidos da morte, e sorriem, e tentam amar
E grudam seus corpos um no outro.
E quando é noite se enlaçam
E o suor de um mistura-se ao suor do outro.

É uma alegria precária que os invade então,
Quando tentam um do outro extrair o sumo,
E o sexo de um habita o sexo do outro,
E as línguas labutam, úmidas,
E o sêmen jorra em rajadas.

Mas são tão frágeis – e vivem apenas
Um minúsculo instante, dentro da cidade,
E respiram da cidade os gases,
E transitam altivos pelas avenidas,
E bebem café nos botecos
E sentam-se nos bancos quando vão fumar.

A cidade é cúmplice de tudo –
É nela que tais estruturas se armam:
A cidade é a cena, a varanda onde
As coisas se reúnem, o terreno onde
As coisas se chocam, a abertura
Por onde as coisas respiram.
É ela que arma um sobre o outro os cubículos.
É nela que os líquidos fluem,
Que os caixões são depositados,
Que os corpos continuamente nascem e padecem.

Pois nos bares florescem as putas
Pois nos becos repousam os embriagados
Pois nas prisões um homem fode um outro homem
Pois nos hospitais, nas fábricas, nos viadutos,
Nas casas de chá, nos salões de beleza:
A cidade é cúmplice, e são inumeráveis
As belezas que nela transcorrem
Assim como são inumeráveis os horrores
Que ela abriga em seus desvãos.

Na escuridão dos galpões
Nas catedrais de penumbra,
Na paz dos cemitérios,
No turbilhão das calçadas,
No calor dos quartos de concubinato,
Nos andaimes erguidos de aço
Nas câmaras que a cidade guarda trancadas
Onde, por fim,  amadurece o fruto híbrido,
O fruto bizarro  e doce que a cidade expele:
O fruto tóxico de seu infinito exercício.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Os Trabalhos do Corpo.




Com os lados, abertos em pares,
Remaneja ele a nova aurora esperada
Com os dísticos – como quem espera a noite
Atrás das coisas – cabelos, oriente de mãos
E dedos fracionados: aonde foste?

Com teus abruptos laços, pés no barro,
Onde estivestes tu, parceiro, que a noite
Aperta o meu peito e gasta a minha alegria?

Com teus vários anagramas posto,
Conserva de mim a brisa fria –
O outono é nosso, companheiro, rasgado:
E aonde forem teus pés, teus ligamentos
Estarei eu, a postos, como estátua.

Com o fausto do teu corpo em mim alinhavado,
Te deitas, homem, sobre a noite arcaica.
E vigia, que a sombra do teu corpo é minha sombra.
E a réstia do teu cheiro é o meu cheiro guardado –
amor dos cálices lavrados, amor das grotas,
Amor dos montes em pedra modelados.

Não é a própria gana de estar vivo?
Não é essa a mesma vida?
Vem de ti, vem de nós, o sangue espesso que
Alimenta as partes e abastece a fornalha.
Vem de ti a paciência de percorrer em mim
As partes amputadas – vem de ti a faina:
A obra e os trabalhos.

A Maquinaria.



 


Esse corpo tão frágil que me veste
Onde o tempo as suas garras crava
Essa capa tão fina que me cobre
A que os homens chamam “pele”
Esse pulso ininterupto no peito
- ora lento, ora apressado –
Esses globos móveis e retráteis
Alocados em duas cavidades
- são chamados pelos homens “olhos”.
É um alento que toda essa vida anima
Ou é a própria vida que, animando-se,
Consome a si mesma como a flama
Acendendo e apagando seus fachos?


São as matrizes do corpo bem armadas
São estendidos os tendões em cruz
E calçadas as espáduas nos desvãos
E dispostos em dutos os nervos.

Essa maquinaria operante e quente,
Que música, que rumor, que sopro, que faísca?
Que motor, além dos céus, acende
A luz de uns olhos como os teus?

Quem, lançado na pesquisa arcaica,
Corpo adentro, perscruta, em vão,
Seu próprio maquinário
Dele recebe rumores, hieroglifos –
Que a angústia que habita o teu peito
E o retumbar que no teu ventre soa
Nada revelam e nada comunicam
Senão o murmúrio surdo
Daquilo que jaz em ti, secreto,
E que a ti mesmo soa indecifrável.

Já não decifro a mim mesmo e não conheço a casa
Onde o meu coração divide em espasmos o tempo.
Então, porque não junto os meus pés e espalmo
Com fervor na areia as minhas mãos cansadas
E deposito meu corpo fatigado sobre as águas?