domingo, 29 de agosto de 2010

O Porto Suspenso.






I

Porto suspenso em andaimes
Junto ao mar de ondas encrespadas
Concha aberta, bivalva,
Que revela, dentro, a carne branca,
A matriz da pérola.

Porto com cais de varas fincadas
Areia feita de minério e limalha
Espuma que é o líquido-sêmen
Formador das coisas.

As coisas formadas e palpáveis
Navegam, carne a carne, no mar
E os sargaços bóiam entre chifres
E compridas tubas de metal lanhado.

A cadência das coisas circundantes
É o ritmo de um pulso existente
Como um coração que nesse mar
Lançasse as naus, singrasse ao encontro
Das linhas suspensas sobre o sal
E na arrebentação, abrisse suas coronárias,
Seus vestíbulos.

II

Que as coisas existentes são átomos e nada
E nós mesmos, falantes ou moventes,
Somos nada e átomos – mas singramos, audazes,
Cabeceando no mar dos hemisférios curvos
Abertos os olhos com força e ávidos,
Seguimos com gracejos, festivais, disputas
Como se nada aí nos detivesse ou ofuscasse.

Como se nada nesse mar nos mantivesse
Sob o domínio estrito da terra e das exigências
Da terra, que são muitas e inexoráveis.

Singramos cegos? Cegos ao que nos corrompe
E mudos como as algas dóceis que cobrem
As distâncias, sugadas no vão das correntes.

Somos os dóceis, os que vão e jamais tornam a vir,
Os que engolidos pelas fossas e desmembrados
Pelos cardumes e macerados pela dentição
Dos polvos, das moréias e das anêmonas.


III

Alarde do aracnídeo do peito
Romance das uvas na colheita
Esgarçados os arcos nas colméias
Salpicados os túneis de sangue saboroso e grosso
Partidas as linhas da palma
As mãos plantadas sobre o barro
A alma de espasmos assombrada
E o sangue, saboroso e grosso, desce
E alimenta o ventre e o baixo-ventre
Onde nos consome a fornalha.

E os rios de água barrenta correm
E os brejos, os veios, os canais
Correm mais em direção ao rio
Tão grosso, tão fundo
As rochas postadas ao lado
O sol que é uma rocha suspensa
Sobre os arquipélagos
Sobre os mananciais
Sobre os mangues
E os fios da vida, que são frágeis,
Como nervos finos e azulados
Estão emaranhados no corpo
E o corpo responde ao tempo
E ao tempo sucumbe sem apelo.

Mas nada disso nos concerne ou toca
Pois seguimos como viandantes ao quais
É desconhecido o rumo e o destino da jornada.

Seguimos fagueiros, exibindo penachos,
Empunhando os membros em riste, eréteis,
Como caçadores, orgulhosos da caça valiosa
Ou expedicionários em marcha vigorosa
Em direção ao nada.

(Ofereço aos vermes
Esse corpo retrátil, ofereço aos vermes meus pés
E aos vermes meu sexo desmantelado,
Aos vermes meu peito e a cavidade que o meu
Peito esconde e protege)


IV

A cadência das coisas existentes no tempo
(o corpo, os cães, as árvores, as pedras)
O contínuo aparecer e desaparecer das coisas
Organiza um ritmo secreto, um pulso –
Somos andamento e aparência e espanto
E saltamos, vendados os olhos, as mãos em cruz,
Para o abismo que nos aspira
A máquina do mundo que nos reprocessa.

(Se a carne sucumbe, logo aparece mais carne
E depois disso mais carne que sucumbe e cai,
De um lado a outro, a carne cai e sucumbe, mas nada
Entrava a produção de carne nova que se sobrepõe
E substitui a carne arcaica)

V

Um porto suspenso no mar da lonjura inabitável:
Somos areia e cal e pedrarias, somos alento;
Um porto suspenso na bruma, que mal divisamos
A estatuária de imprecisas formas
E mal sentimos investir na face
O vento salgado que ricocheteia nos muros
E sibila nas frestas do madeirame.

Um porto suspenso é o que somos
Ou somos a neblina que arredonda as coisas
(Somos átomos e nada)
Ou somos lonjura e não sabemos
Ou a noite que recobre tudo
E a tudo acolhe no seu véu.

Um porto suspenso é o que somos
Ou somos a indefinida espera
(e oscilamos entre ser e nada)
E aqui habitamos, no saguão do corpo,
Desconhecidos de nós mesmos
E dos que aqui conosco esperam.

Os corpos brancos, espaçados,
Cada qual em seu invólucro
E sanguinolenta cápsula – aqui pairamos,
Como esfinges inscientes do enigma
Ou como máscaras às quais falta o rosto,
Aqui lidamos com a vida em feixes
E a cada feixe decomposto suspiramos
E a cada suspiro empalidecemos.

Escuta-se ainda a voz de Heráclito
Á beira de todo largo rio, cavernosa,
A relembrar o eterno fluxo do qual
Compartilhamos uma ínfima parte.

E o fogo aceso que em nós arde
É o fogo vivo que ardia antes
E o fogo que arderá depois somos nós –
Vida imaculada pelo tempo,
Luz que nos habita na voragem,
Campo de matizes ou terreno
Ou amurada tomada pela hera:
Somos nós na chuva e nas rajadas
Somos nós nas matas ciliares da margem
Somos nós nas dunas, nas falésias
Somos nós no gelo, nos gêiseres de água fervente,
Nas ilhas do Pacífico espaçadas
Pela amplidão das milhas de viagem.

VI

Abarca, amor, com teus braços, o meu corpo que perece.
Abarca com teus braços brancos os meu corpo
Que a vida finda, amor, e já antevejo o instante
Em que os teus braços serão lava efervescente
E os teus olhos serão nuvens que passeiam
E os teus pés imaculados serão erva
E os meus pés serão a terra onde a erva cresce.

Aperta, amor, contra o meu o teu corpo:
Que o cancro da morte jaz em nós, enraizado.
Aperta com fervor contra meu ventre a tua face,
Reconhece em mim o que há de vivo e de pulsante
Porque num instante, amor, se desprenderão as
Tuas mãos das minhas e o teu calor e o meu calor somados
Serão calor da tarde e o sangue que nos preenche
Há de preencher outras artérias, amor, que não as tuas,
Que não as minhas.

E o brilho que vivifica os teus olhos apagará.
E o cheiro do suor do teu sexo misturar-se-á aos outros cheiros.
E os teus quadris serão desmontados e repousarão.
E a tua febre arrefecerá no início da manhã.
E o formato angular do teu rosto será desfigurado.
E ao fim da tarde repousarão as tuas pernas.
E ao anoitecer a água dos teus olhos vazará.
E na madrugada as folhas do teu coração sucumbirão.

VII

O mundo e as parreiras que habitam o mundo
E as dobras do mundo, untadas com óleo das flores
E as ruas das cidades do mundo cravejadas de pedra
E as torrentes de água e as vertentes
E as turbas violentas do mundo e a confusão toda
Da vida que respira e arde.

E os portos do mundo e as estradas tranversas do mundo
E as planícies e os vales aprazíveis onde voejam
As vespas do mundo e máquina do mundo que não cessa.

Sou teu afluente, teu discípulo,
Almirante em ti contido,
Rumor das tuas fossas,
Interior dos teus flancos,
Ignorante de ti, mas teu servo:
Sou teu sumo, tua sutileza
Sou a alma dos teus cânticos
A água dos teus cântaros
A falange em teus combates
Sou teu centurião, armado,
Permaneço em ti se estou vivo
E amanheço em ti e anoiteço.

Sou um gânglio teu e habito a tua carne
E não te livras de mim senão extirpando
Aquela parte tua mais interna e secreta.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Como uma Asa Pousa.





Quando a tarde vai chegando ao fim,
a noite pousa sobre a cidade como uma capa
pousa sobre o formato arredondado de um corpo.

E as arestas do corpo encapadas,
e os ligamentos do corpo bem untados.

Alguém na janela, caso esteja atento, percebe que
a noite pousa sobre a cidade como uma asa pousa
e em seu voejar produz o vento espaçado em rajadas –
Como pousa a asa de um pássaro – delicada e firme.

E é possível sentir no fim da tarde um augúrio.

Dentro da carne, nas partes macias do corpo,
a noite injeta um novo ingrediente – suas ventosas
premidas sobre as esquadrias da cidade,
o avançar contínuo da penumbra sobre as coisas –
produz nos pomos mais suculentos da carne
um um gosto novo – de terra, ferrugem, erva macerada,
resquícios de outras tardes que refloram,
umbrais reabertos pelo quase-noite,
remotas regiões da alma que emergem,
fogo, clarão de rochas, vulto de ruínas.

A noite pousa – mais espessa – e o horizonte já perplexo,
repleto de  rabiscos,  seus grandes vãos já estriados,
sucumbe aos véus que a noite sobre a cidade vai dispondo.

E fascina, a quem por acaso possa estar atento nessa hora,
 a arte com que a noite toma a cidade sem que
palavra alguma seja dita – pousa em silêncio, alheia,
madrinha, majestade, justamente como pousa a morte –
sem que gesto algum de mão humana seja necessário.

Minutos depois, está pousada, e reina.
Está instalada nos recheios do corpo e fora dele, e ali governa.
Sabe-se potente, e exerce em toda parte sua potência.
A noite suprema – suas altas cercanias, seus costados .

É doce, na cidade enfim coberta pela noite,
sentir que a tarde extinguiu-se.

É de uma doçura quase insuportável
perceber que o corpo está sujeito
ao mesmo mecanismo que extinguiu a tarde
e que instalou sobre todas as coisas a noite.

A carne, macia como a tarde, tão frágil como a tarde,
tão cheia de poros, matéria permeável
à mesma série de desígnios que, de dentro do cerne
da tarde, com a doçura de um manto-pássaro-pousado,
extraiu, de pouco a pouco, a floração da noite.

É da mesma doçura de uma mácula.
É ultrajante, porém doce.

É uma agulha tão fina
cravada com minúcia
na parte mais tenra da carne.

Enfim,
como matrona empossada,
vadia soberana,
a noite estende domínios.

Quem estava na janela, atento,
Volta para dentro da casa,
Acende a lâmpada,
Escolhe uma música,
Faz um telefonema.

Pois então já é fato consumado:
a noite é senhora.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pequenas Vibrações:VIDEO + TEXTO.




Há pequenas vibrações.  Há cristais feitos de vento. Ou nem cristais são, mas apenas vento. São  objetos sutis. Ou nem objetos são, apenas ensaiam uma forma, não chegam a cristalizar-se. Há pequenas ondulações  - quase não se percebe. Mas quando o olho está atento – grãos de energia, películas tão finas – há tesouros que apenas por um breve instante rebrilham. São jóias delicadas, cuja breve existência é quase sempre conduzida em segredo.


Quem testemunhou o faiscar das gotas ao lado dos bujões de gás à tarde quando chovia? Quem soube, durante a chuva,  do mínimo tremor das folhas da planta abandonada nos fundos da garagem? Quem viu a dança das formas que a luz desenhava na água nessa hora? Ninguém viu, ninguém sabe. São pérolas quase imateriais.


Há pequenas vibrações. É preciso se aproximar com cuidado. São esquivas. Com a leveza das coisas que não duram – acontecimentos que ocupam um tempo minúsculo – o ritmo daquilo que é muito provisório. Ser testemunha ali é uma dádiva. É como penetrar num reino interdito, numa terra de surpresas.


Quase-objetos, essas pseudo-formas. Oscilam na fronteira entre o material e o espiritual, o concreto e abstrato,  visível e invisível. São fantasmas da matéria, e reverberam tênues, e o brilho que emanam logo desfalece, a beleza que exibem para sempre extinta.


Uma experiência como essa não é comunicável. As palavras são rudes demais para exprimi-la. Talvez a música, quem sabe uma música extremamente delicada (talvez Chopin ou Debussy) possa dizer alguma coisa sobre o assunto.