terça-feira, 17 de agosto de 2010

Como uma Asa Pousa.





Quando a tarde vai chegando ao fim,
a noite pousa sobre a cidade como uma capa
pousa sobre o formato arredondado de um corpo.

E as arestas do corpo encapadas,
e os ligamentos do corpo bem untados.

Alguém na janela, caso esteja atento, percebe que
a noite pousa sobre a cidade como uma asa pousa
e em seu voejar produz o vento espaçado em rajadas –
Como pousa a asa de um pássaro – delicada e firme.

E é possível sentir no fim da tarde um augúrio.

Dentro da carne, nas partes macias do corpo,
a noite injeta um novo ingrediente – suas ventosas
premidas sobre as esquadrias da cidade,
o avançar contínuo da penumbra sobre as coisas –
produz nos pomos mais suculentos da carne
um um gosto novo – de terra, ferrugem, erva macerada,
resquícios de outras tardes que refloram,
umbrais reabertos pelo quase-noite,
remotas regiões da alma que emergem,
fogo, clarão de rochas, vulto de ruínas.

A noite pousa – mais espessa – e o horizonte já perplexo,
repleto de  rabiscos,  seus grandes vãos já estriados,
sucumbe aos véus que a noite sobre a cidade vai dispondo.

E fascina, a quem por acaso possa estar atento nessa hora,
 a arte com que a noite toma a cidade sem que
palavra alguma seja dita – pousa em silêncio, alheia,
madrinha, majestade, justamente como pousa a morte –
sem que gesto algum de mão humana seja necessário.

Minutos depois, está pousada, e reina.
Está instalada nos recheios do corpo e fora dele, e ali governa.
Sabe-se potente, e exerce em toda parte sua potência.
A noite suprema – suas altas cercanias, seus costados .

É doce, na cidade enfim coberta pela noite,
sentir que a tarde extinguiu-se.

É de uma doçura quase insuportável
perceber que o corpo está sujeito
ao mesmo mecanismo que extinguiu a tarde
e que instalou sobre todas as coisas a noite.

A carne, macia como a tarde, tão frágil como a tarde,
tão cheia de poros, matéria permeável
à mesma série de desígnios que, de dentro do cerne
da tarde, com a doçura de um manto-pássaro-pousado,
extraiu, de pouco a pouco, a floração da noite.

É da mesma doçura de uma mácula.
É ultrajante, porém doce.

É uma agulha tão fina
cravada com minúcia
na parte mais tenra da carne.

Enfim,
como matrona empossada,
vadia soberana,
a noite estende domínios.

Quem estava na janela, atento,
Volta para dentro da casa,
Acende a lâmpada,
Escolhe uma música,
Faz um telefonema.

Pois então já é fato consumado:
a noite é senhora.

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