Espera que um rasgo abra a carnadura da noite? Mas a noite é vestimenta. E está pousada. Espera que a adaga recupere da noite aquilo que restou remoto? Mas a noite é paciência e fúria. E se do mesmo caldo o exaspero e a prece comungam, é porque da noite comungamos nós, atados. E não se espera da noite a complacência das tardes; nem tampouco se exige da noite a placidez das manhãs. Pois é com sestro taciturno que ela nos transporta, madrinha dos flancos, é no labor opaco de seus negaceios que ela nos afunda e rege. Dela saímos macerados, tortos – como a chapa sai da forja ainda torta. Dela somos fruto e hospedeiros. Pois da opulência de seu porte e da audácia de seus mandamentos partilhamos. E estacamos, calados, quando ela abre seu arsenal de despojos. E nela nos fiamos, madrasta. E sobre seus andaimes caminhamos. E nos rejubilamos.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Os Impérios.
Impérios. Deixe-me dizer, porque eu guardo em mim uma palavra. Ontem, quando as coisas. Hoje, quando as ruínas do teu corpo. Impérios de ontem. Teu corpo é um objeto inacessível. Tua cabeça é um jarro. Teus ombros são andaimes. Eu estou prestes. Imagino teu corpo na espuma. Império, és tu, de onde a vida, de onde prodigiosa fauna, de onde o cerne de todas as coisas provêm. Estás aqui? És como um augúrio. Sou teu rastro, sou o barro por onde os teus passos. Teu dorso é o campo por onde meço os movimentos do mundo. Aonde paras, lá estou, atento, como um cervo. Tenho carne e sangue quentes. Estou a três passos de ti. Mas és fundura e longitude. Eu sou amplidão, pastagem. Espero a tua vinda e o teu anúncio. Enquanto não vens, escrevo ideogramas na rocha. Nos impérios, onde habitaste, abunda o vinho e o mel. No teu corpo, labuto eu, imaginário, como um escriba. Estás aqui? Já sei de ti. És alto, infinito e forte. Vou a ti, como vão as formiguinhas. Sou teu manto e complemento. Já não vivo: espero a tua transfiguração, o céu, das cores frisadas, teu manto branco, teus olhos. Os impérios. De onde vieste, tais impérios, são os teus? Avança, a poesia deve estar mais viva, avança, amor, pois onde estás, lá estou eu, teu servo. Deixe-me dizer, porque guardo em mim vagalhões de lava. Aonde foste, teu peito é um vaso, teus olhos são dardos, teus dedos, teus artelhos. Estou em ti como a planta permanece enraizada na terra. Sou daqueles que fundaste, com teu nome. Eu mesmo, aqui paro, sou um nome vivo, à tua espera. Vens? Estás solto, e o vento. Estás atento - sobre o mundo. Eu permaneço aqui, aferrado ao corpo, movente, amargo, fugidio.
***
Impérios, sei de ti. Deixe-me dizer, que tenho em mim os ares, as tormentas. Não descanso. Sei que estás aí, sei que és quieto, sei que és escuro. Eu sou escuro, nos impérios, avanço sem teus rumos, avanço sem teu perfume, sem teus braços. E ponho em movimento os instrumentos que me deste, arrumo teu céu, subo aos teus montes, contemplo teus entardeceres. Mas nunca vens. Aonde foste? Aos impérios. Sou um pequeno ser escurecido e busco a tua luz. Nos impérios, a tua força, o músculo, as luzes, tudo age.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Uma Vida de Orquídeas.
1. É com tanta cautela que arrisco-me a pronunciar seu nome. Com a a delicadeza de quem não quer se deixar enganar pela aparência. Um dirá: “é uma planta bonita”. O outro: “não é parasita, é epífita”. O que de nada adiantará. Nada ficará esclarecido. O que é necessário para aproximar-se de uma vida de orquídea? Como é possível pronuncair juízos sobre a orquídea, sem ao menos, por um instante, haver cogitado sobre os muitos e obscuros fatores que, conjugados, resultaram na existência da planta?
2. Quero deixar claro que as flores são meramente os órgãos sexuais. Nada do que digamos poderá reverter o fato. Quero também alertar que fotografei as flores não por serem belas ou raras, como querem alguns, mas porque me senti impelido pela intuição de que seria possível constatar, nas fotografias, não a beleza que se espera das naturezas-mortas, mas sim o susto que se espera das imagens de genitálias.
3. Querem alguns que a orquídea seja bela. Não concordo. Não que eu seja insensível à evidente estranhez que ela exibe, tão altiva. Porém, seria triste carimbá-la com adjetivo tão pobre. Não sei se estou certo, mas bela me parece uma palavra pífia para caracterizar a orquídea, seus talos arroxeados, seus estames, seu porte de rainha-mãe. Prefiro uma adjetivação mais densa, que faça jus à opulência de seu talhe, ao seu oculto poder encantatório.
5. Estive lendo sobre as orquídeas e descobri que elas possuem pseudo-bulbos que agem como reservatório alimentar, o que as torna resistentes e capazes de suportar longos períodos de seca. Li também que o Brasil possui mais de 3.500 espécies nativas. No mundo, são cerca de 20 mil espécies, espalhadas por todo o globo, exceto nas regiões polares.
9. É uma planta pavorosa se a olharmos no microscópio, com seus muitos tentáculos. E peluda, obscena, úmida, pegajosa, com suas tantas protuberâncias, suas saliências. Aparece asquerosa se a olharmos através de lentes possantes, ela, a dentição de suas gárgulas, seus grudentos filamentos, seus repulsivos orifícios, seus testículos.
10. E bissexuada, com seus cachos. E frívola, herbácea, a planta suspensa em plantas, cria das capoeiras. a filha atlântica, selvática, de folhas lanceoladas*, sésseis*, coriáceas*. A famigerada, a adventícia, a planta lúbrica, seus pendões luminescentes, suas aderentes raízes. A planta trepada em plantas, agarrada aos troncos – e daninha, ornamentada, a planta cromossômica, seus genes manipulados. A planta enxertada em plantas, seu epifitismo ou o prazer da escalada milimétrica.
*
lanceolado: cujo feitio é semelhante ao da lança.
séssil: diretamente inserido, sem pedículo ou haste de sustentação.
coriáceo: de consistência semelhante à do couro.
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