quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Uma Vida de Orquídeas.



1. É com tanta cautela que arrisco-me a pronunciar seu nome. Com a a delicadeza de quem não quer se deixar enganar pela aparência. Um dirá: “é uma planta bonita”. O outro: “não é parasita, é epífita”. O que de nada adiantará. Nada ficará esclarecido. O que é necessário para aproximar-se de uma vida de orquídea? Como é possível pronuncair juízos sobre a orquídea, sem ao menos, por um instante, haver cogitado sobre os muitos e obscuros fatores que, conjugados, resultaram na existência da planta?






2. Quero deixar claro que as flores são meramente os órgãos sexuais. Nada do que digamos poderá reverter o fato. Quero também alertar que fotografei as flores não por serem belas ou raras, como querem alguns, mas porque me senti impelido pela intuição de que seria possível constatar, nas fotografias, não a beleza que se espera das naturezas-mortas, mas sim o susto que se espera das imagens de genitálias.





3. Querem alguns que a orquídea seja bela. Não concordo. Não que eu seja insensível à evidente estranhez que ela exibe, tão altiva. Porém, seria triste carimbá-la com adjetivo tão pobre. Não sei se estou certo, mas bela me parece uma palavra pífia para caracterizar a orquídea, seus talos arroxeados, seus estames, seu porte de rainha-mãe. Prefiro uma adjetivação mais densa, que faça jus à opulência de seu talhe, ao seu oculto poder encantatório.



4. Experimento um giro pela região pantanosa – o arcaico orquidário. Tenho um corpo curvo feito de hastes, tenho um nome que não se pronuncia. Meu organograma de borbulhas – um grande espelho lacustre, um arrecife, um arquipélago – e apareço com meus órgãos lisos, apareço em lagunas, planícies em formação. meu corpo turvo, feito de partes minhas e partes vegetais.




5. Estive lendo sobre as orquídeas e descobri que elas possuem pseudo-bulbos que agem como reservatório alimentar, o que as torna resistentes e capazes de suportar longos períodos de seca. Li também que o Brasil possui mais de 3.500 espécies nativas. No mundo, são cerca de 20 mil espécies, espalhadas por todo o globo, exceto nas regiões polares.




6. Uma estranha estrutura viva, intrincada, complexa, erguida sobre uma pequena caneca com água. Sobreviveu no meu apartamento por cinco dias. Quando começou a murchar, lancei ao lixo, sem dó. Pois a orquídea não espera de nós sentimentos piedosos. Ela quer a parte forte – fígado, rins, cerebelo – ela quer a vida, a convulsão, o estremecimento.



7. Doidivanas, uma orquídea circunflexa cruza o céu da cidadela. E com seus badulaques, injeta uma boa dose de tesão na artéria-mestra. Com ela, um passeio pelo orquidário, uma ronda na paisagem que desvela a festa, pétala, o pólen de suas anteras, pele de suas sépalas, vertigem. Ou seu aroma, dela, opiáceo, acre. Mas ela, angiosperma, a orquídea solta na balada, perdida, seu corpo-artrópode lançado em geringonça giratória.





8. Órchis, do grego, testículo. Orchidion, pequeno testículo. Ela, nomeada por suposta semelhança. O vocabulário científico conserva várias palavras assim prefixadas – veja-se "orquiotomia"- incisão em testículo ou "orquidômetro" - instrumento usado para medir testículo.





9. É uma planta pavorosa se a olharmos no microscópio, com seus muitos tentáculos. E peluda, obscena, úmida, pegajosa, com suas tantas protuberâncias, suas saliências. Aparece asquerosa se a olharmos através de lentes possantes, ela, a dentição de suas gárgulas, seus grudentos filamentos, seus repulsivos orifícios, seus testículos. 






10. E bissexuada, com seus cachos. E frívola, herbácea, a planta suspensa em plantas, cria das capoeiras. a filha atlântica, selvática, de folhas lanceoladas*, sésseis*, coriáceas*. A famigerada, a adventícia, a planta lúbrica, seus pendões luminescentes, suas aderentes raízes. A planta trepada em plantas, agarrada aos troncos – e daninha, ornamentada, a planta cromossômica, seus genes manipulados. A planta enxertada em plantas, seu epifitismo ou o prazer da escalada milimétrica.


*
lanceolado: cujo feitio é semelhante ao da lança.
séssil: diretamente inserido, sem pedículo ou haste de sustentação.
coriáceo: de consistência semelhante à do couro.

Um comentário:

Paulo Briguet disse...

Salve, Ygor. Bela casa. Voltarei amiúde. Tem café, tem orquídea, tem João Sebastião.