sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Rio Caudaloso.


Há um rio tão caudaloso
que desce por uma antiga rua
e no seu curso leva os moços
e o sono dos moços misturado à espuma;
e no seu curso leva a renda
e a cristaleira, herança da família
e leva os broches e os camafeus.

Há um rio de águas revoltas
que por uma antiga rua da colônia desce
e no seu curso leva as pétalas
e o arredondado dos seios das moças
e o almiscarado do sonho das moças
misturado à espuma e misturado às pétalas.

Nesse rio de águas turvas, pegajosas
vão os silvos e os murmúrios
e o suor das noites e a ternura
e as palavras pronunciadas com cuidado
e mesmo aquelas não pronunciadas
vão todas emboladas nesse rio.

E mesmo as vestes e os andrajos
e os véus mais finos vão por sobre a água
e os lençóis ainda quentes vão boiando
como vão os travesseiros e os colchões,
rodopiando no leito desse rio
vão as anáguas de seda e os casacos
e as meias e as roupas de baixo
vão todos em fila e sobrepostos
como vão também as primaveras
e a luz das primaveras vai cristalizada.

Ainda vão no fundo lamacento desse rio
as culpas sem expiação e os lamentos
assim como os juramentos desfeitos
assim como os duelos de sangue
assim como os pactos travados
e os abraços apertados vão
e mesmo os apertos de mão
e as bofetadas vão,
e vai a fúria encavalada no leito desse rio,
e as juras de morte vão
e as juras de amor eterno vão jungidas
já destituídas da certeza que então as inflamava
vão pálidas e como que desistidas de si
e vão misturadas à confusão de galhos e troncos
e corpos flutuantes de animais.



Que nesse rio vão viajando a nudez e a volúpia.
Que nesse rio vai desfilando a audácia.
Que nesse rio – no turbilhão de suas águas
vai o medo e, sobrenadando, a coragem.

Há um rio de águas turbulentas
que por uma pitoresca rua da colônia desce.
É uma ladeira e a água vai depressa,
vai levando na jornada toda a vida
e vão as bicicletas e as torneiras
e os fogões e os ferros de passar
e as pias e as privadas arrancadas vão,
assim como vão as máquinas de costura
e as escarradeiras e os armários,
e as caixinhas de supresa
e os talheres e até mesmo a mesa vai
com os pratos, gurdanapos e as sopeiras
e até mesmo os convidados vão
e os donos da casa e as mucamas
e mesmo o cão de estimação da casa,
já caduco e aleijado vai,
sem que se possa, ainda uma vez,
recuperar aquela tarde na varanda
quando se ouvia ainda a alegria de seus latidos
esparramados no vento.

(Porque mesmo aquela tarde vai
e com ela vão a ambrosia e a louça
e a toalha rendada que compunha a mesa
e os murmúrios das moças reunidas
e o voejar dos leques no mormaço,
toda a ossatura oca daquela tarde
vai descomposta e torta
e seu perfume vai mesclado
ao perfume de outras tardes mais antigas.)


E vão a mãe, o pai, os filhos,
a avó, a bisavó e os ancestrais,
vão as irmãs e as primas
e os irmãos e os capatazes
vão todos, rodopiam, já não nadam,
simplesmente deixam-se levar,
sujeitam-se aos caprichos da voragem,
vão perdidos, com folhas no cabelo,
alguns nus, outros em farrapos,
mas vão acesos, de olhos abertos,
embora já mais nada enxerguem,
apenas pressentem que viajam.

E vão grinaldas, luvas, cachecóis
e vão as saias rodadas dançando
ao sabor da correnteza espessa
e vão as calças, as ceroulas
e as bombachas vão infladas
com suas guaiacas ainda transpassadas
e os macacões de brim vão encharcados,
 e as contas e os colares também vão.

E vai setembro com seus desvarios
e agosto vai com seus augúrios
e as promessas de janeiro vão
e vai maio com suas claridades
seus recantos de luz entretecidos na sombra
e mesmo as manhãs de maio gloriosas vão
mesmo aquelas, mais radiantes, mais claras,
vão todas, sem distinção, rodando n´água,
desperdiçando seu brilho.

Esse rio tão caudaloso,
que rola por essa alameda
tão antiga.

Rolam corações de rocha cristalina
e corações de rocha calcária
e rolam corações inteiros,
ainda em sístole e diástole
e mesmo corações despedaçados rolam,
mas esse afundam porque fazem água
e depois encalham no barro.

E como vão ainda verdejantes os muros de hera
e as buganvílias, como vão viçosas,
e as trepadeiras e as cercas-vivas,
como vão ainda floridas, ainda perfumadas!

E os salões de festa e os pátios,
os ginásios onde florescia a vida,
e as salas de laboratório, os tubos de ensaio,
vão os vidros com cascavéis conservadas
e as pombas e as gaivotas empalhadas,
e os cadernos de desenho e os compassos,
vão os balcões e as escadarias da infância,
e até mesmo o cheiro dos recreios da infância,
e o gosto estranho das jaboticabas
e a algazarra das horas perdidas da infância,
vai tudo nesse curso, nada se salva,
nem mesmo aquela vida mais profunda
que no cerne da alma nova fermentava,
efervescia, irradiava,
e conspirava por mais vida.


E a primeira inocência
e o primeiro espasmo
e o primeiro jorro
e o primeiro estertor
vão todos,
vão transfigurados.

Vão todos confusos, enlheados,
os olhos abertos ou entrecerrados
vão descendo pela rua da colônia
os touros e as vacas de leite e os bezerros
e as patas e as galinhas e até mesmo
as galinhas d´angola vão, sarapintadas,
as capivaras vão, muito fagueiras,
e acredite – uma grande onça parda
dessas que rondavam na madrugada
nossa casa.

Vão as mãos enregeladas, costas nuas,
os flancos guarnecidos, as espáduas,
vão as expressões de susto e as gargalhadas,
a linha que divide em dois o peito
e a linha que atravessa as costas,
vão as rótulas e os calcanhares,
já separados das pernas
e o formato amendoado dos olhos
e os próprios olhos vão, opacos,
as retinas danificadas pela água.

E vai o verão e o calor das noites de verão
e a brisa que fazia tremular os plátanos,
e o sonho que na noite de verão se sonhava
vai ramificado e dividido em placas
como em fotogramas plasmado
e a felicidade que nessas noites brotava
e o giro das estrelas sobre o campo
e cheiro da resina pegajosa do lenho
misturado ao cheiro do barro e da erva macerada.

2 comentários:

Anônimo disse...

Belo poema, Ygor. Lembrou-me "A meditação sobre o Tietê", de Mário de Andrade, embora seja diferente. Outro rio. Um forte abraço do sempre leitor,
Paulo Briguet.

Anônimo disse...

Eis uma resposta para Santo Agostinho.