segunda-feira, 12 de abril de 2010

Coração nas Mãos.




Para D.

Eu tenho o teu coração em minhas mãos. Seguro com cuidado o teu coração. Ele é escorregadio. O teu coração pulsa e tenta escapar. Preciso de toda a minha atenção para mantê-lo quieto, preciso ser delicado, como quando se segura nas mãos um pequeno pássaro – qualquer movimento pode machucá-lo. Disseram que o teu coração tinha o tamanho de um pulso fechado. Mas ele é maior. Sei agora que ele é um objeto robusto. É coroado de veias, uma teia de veias azuladas o envolve. Nas minhas mãos, eu carrego o teu músculo.

Tracei meu plano com minúcia. Você dormia no quarto ao lado. Sorrateiro, sem que você ao menos percebesse, arranquei do teu peito o coração. Não foi fácil. Teu peito é rijo, precisei de uma faca pra serrar tuas costelas. No fim da cirurgia, lá estava ele, suculento como um fruto. Fui bem sucedido na tarefa, guardo agora comigo esse bizarro tesouro. Eu sou agora o único dono do teu coração. Sinto vontade de cravar-lhe os dentes, de sentir na língua o gosto do teu coração. Mas não vou fazê-lo. Agora que o tenho, estou apaziguado. Vou guardá-lo comigo. Eu o quero vivo. Entenda que eu abri teu peito porque fui tomado pela violência inocente daqueles que amam em desespero. Mentem aqueles que dizem que o amor é manso. Pois não fui eu quem te arrancou o coração. Foi a própria fúria, a própria urgência, a própria truculência do amor.

Agora o tenho nas mãos, e percebo como é belo. Róseo, rajado de estrias, o pequeno objeto de carne me fascina. Só tenho olhos para o robusto coração. Posso explorá-lo gentilmente com meus dedos e sentir os pequenos vãos, fissuras de uma tal delicadeza, posso repetidas vezes provar a doçura de suas saliências, a maciez de suas arestas. Com ternura, eu o afago. E sem poder conter a alegria, derramo sobre a sua superfície uma lágrima.  O coração audaz aceita o líquido, como se o bebesse.

Eu agi com muita astúcia. Antes de executar meu feito, do qual agora me vanglorio, pesquisei em segredo cada milímetro quadrado do teu peito. Executei uma pesquisa de campo. Soube então que o teu peito é vasto como um prado. No outro dia, enquanto conversávamos, você repentinamente tirou a camiseta. Soube então que o teu peito nu é como uma planície. Há vastidão de estepes, certa desolação de savana. Ali o caminhante se perde entre charcos, formações rochosas, tufos de matéria capilar, vertentes. Mais tarde, quando deitaste em minha cama, pude avançar na pesquisa. Por baixo da tua camiseta, meus dedos certificaram-se de que o teu peito é quente e fibroso. A estrutura é sólida. A armação é bem montada. Apalpei a curvatura das tuas costelas e constatei que o teu peito é uma armadura rude,  modelada com grande engenho. Exausto de admirar o perfeito coração, deixei-o sobre a mesa e caí em sono profundo. Dormi durante muitas horas.

Acordei numa manhã de domingo, depois de uma festa tóxica, num apartamento estranho. Fui direto ao coração. Ele havia desaparecido. Não deixara vestígio algum. Desesperado, procurei em cada fresta por alguma pista. Então eu soube: ele havia escapulido. Era mais esperto do que eu imaginara. Sem saber o que fazer, fui até a sacada e acendi um cigarro com a mão trêmula. Esperei por ti, aflito. Durou milênios, aquele cigarro. Imaginei que talvez você, sentindo que eu o esperava, viesse até a sacada e me abraçasse por trás, dizendo: “esse coração é teu”. Mas não vieste. Veio um outro, uma sombra, um estranho, um vulto. Quando passei, a tua porta já estava cerrada. Dilacerado, me retirei dali. Sem teu coração, minhas mãos tateavam o ar da manhã, em vão. No caminho de casa, atravessei a feira de domingo como um fantasma atravessa a escuridão. Eu agonizava, pois perdera o objeto mais precioso do mundo. Reconheci enfim que eu fora incapaz de manter entre minhas mãos o coração. Algo muito valioso assusta, é difícil lidar como a alegria quando ela é grande demais. É impossível conter em minhas mãos o teu inquieto coração.

* imagem de Andy Warhol.

Um comentário:

GH disse...

"é difícil lidar como a alegria quando ela é grande demais...".

É assustador! Fica aquela sensação: "E agora, o que a gente faz?".