segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Canção de Morte





A morte é a possibilidade da impossibilidade
de toda relação, de todo existir.
Martin Heidegger, Sein und Zeit, af. 52

Mergulho na morte de cabeça baixa, estupidamente,
sem a observar ou reconhecer, como se me precipitasse num
abismo mudo e obscuro que me engolisse repentinamente
e se apossasse de mim num instante com um
sono pesado, repleto de insipidez e indolência.

Michel de Montaigne, Os Ensaios, III, 9
                                                                                      
Exordiu

De onde vem o verbo, vem o artifício, de onde
vem o verso, vem com ele o júbilo e o sacrifício
de sobre a morte compor um mais ou menos
concertado conjunto de vocábulos, estes, que
por exatos que pareçam, não passam de
uns toscos artefatos, incapazes por si mesmos
de desvelar o que seja a morte, não tanto por
razão de própria e intrínseca imprecisão,
mas pela humana incapacidade de sobre o
tema em questão estabelecer qualquer conhecimento
mínimo, razão pela qual não passaria de um
embuste se declarasse o poeta ser este um “poema
sobre a morte”, como, se da morte nada se sabe,
mais sensata é a asserção que diz ser este um
“poema sobre as muitas e variadas reações que
nos causa o fato sabermo-nos mortais”,
isso sim seria mais adequado. Donde advém
o fato de que sobre a morte mesma não seja
possível escrever nada, pode-se apenas tratar
dela, digamos, indiretamente, seja recorrendo
a imagens e metáforas, seja inventando cenas
e situações nas quais ela esteja presente, porém
não como protagonista, mas como mero fator que
desencadeia uma série de ideias, sensações e
associações, vale dizer que um suposto poema
sobre a morte é sempre camufladamente um
poema sobre a vida em face da morte.
Dito isso, apressemo-nos em iniciar o poema,
este, que curiosamente intenta investigar
um objeto sobre o qual o poeta nada sabe,
como ousa ele com tal presunção invadir
esse terreno ao mesmo tempo sombrio e fascinante
que é o da morte, totalmente desconhecido,
mais ainda assim atraente, é realmente
um desplante o fato de os poetas andarem
por aí a versejar sobre o que não sabem e
provavelmente nunca virão a saber, mas o que
se há de fazer, é característico da poesia,
isso de querer exprimir o inexprimível, explicar
o inexplicável, conhecer o incognoscível.

I

De onde vem o vórtice, consumo de outros
vórtices iguais ao vosso, de onde luze a centelha,
sumário de outras centelhas que são vossas,
bem onde fica o sacrário, seja a vida que vos alenta,
seja o sepulcrário, ali onde a morte oculta seus
destroços, que sob o consumado lume dantes vosso
repousa uma laje, que o que dantes girou vivescente
sobre as estepes do mundo, hoje jaz emparedado,
já não oscila, já não arde, por que artes hei eu
de vos rever um dia, alvo, luzente, coroado,
se eu mesmo hei de seguir o atalho cujo destino
repousa sobre a mesma laje, como hei eu de vos
reter em meus braços, se os meus alicerces são
bem como os vossos perecíveis, por que artes
hei eu de vos reencontrar, quem sabe em outro
reino, outro hemisfério, ali onde aéreos, delicados,
vou convosco, lado a lado, ali onde de braços dados
sob um verdescente prado caminhemos, mas como,
se nem o meu corpo, nem o vosso, e se nem o meu
rosto, nem o vosso hão de ultrapassar incólumes
os umbrais da noite, antes – oh despautério,
oh invólucro – turbilhonados sob um mar de andrajos,
lágrimas, flores murchas, cessarão ambos de
existir como rosto e corpo, passarão a existir
como despojos, e logo como pó, e logo como nada.

II

Rebenta, oh saliente pomo, refulgiste,
agora, desfalcado do luzeiro que era teu,
 emudeço lívido, e vou reabrindo as
comportas onde guardei, plasmado,
um esboço dos teus olhos.
Rebenta, oh desvanescente, oh desenfeixado
talhe, aonde foste, que o meu desalento
apalpa os ares e tudo o que logra alcançar
é um vácuo frígido – pois da voz que outrora
altissonante, silêncio, do corpo antes
resplendente, escombros, do halo de calor
um sopro gélido, do dorso antes ondulante,
do estofo carnoso, mais escombros, dos pés
que dantes lépidos, hoje imóveis e unidos,
das mãos dantes gesticulantes, hoje cruzadas,
insensíveis, do ventre outrora torneado,
desventrado hoje, dantes tocado por meus lábios,
do sexo, rosado dantes, dantes delicado,
apenas um fiapo bafiento, do rosto antes
numinoso, uma desfigurada máscara,
esta, que mortuária ou mortuória, extinta
a força que lhe geria os músculos, conserva
agora uma expressão sempre a mesma,
ainda que inexpressiva e dura, após o que,
desfeita a musculatura, expressão nenhuma
há de restar, a não ser que algum venha
alegar ser expressivo o crânio humano,
o vazio das órbitas, a ausência de lábios,
e justamente por isso a ausência de sorriso,
não por acaso a tradição sugere ser justamente
esse o rosto da morte, porém nisso não nos
fiemos, que a morte não tem rosto, portanto
contentemo-nos com a sua espectral imaterialidade,
porém digamos desde já que, malgrado nosso,
imaterialidade nada tem que ver com inexistência,
ainda que seja óbvia a informação, não custa
aqui deixá-la registrada, pois que não raro
são as maiores obviedades as que nos escapam,
veja-se o caso da morte, que de tão óbvia,
 e talvez nada exista sobre a Terra de mais óbvio,
chega a ser – inacreditável.

Rebenta, oh sepultante, que da carícia
há de emergir a fresta, de onde frondoso
brota o valeroso (ou volumoso) espécime,
em festa pois rebenta, oh despojada réstia
do que foste, oh desconcertada coleção
de ossos, que do alteroso porte que antes
exibiste, do desassombrado e opulento
e forte há de emergir o assombro, o espavento,
o espanto com que frente à morte nos
apresentamos, é o moroso drapejar de
um trapo, o rumorejar dos galhos quando
o vento, à meia-noite, quando emparelhado em
mim teu cetinoso túnel, que resfolegante
esfregas sobre a minha a tua fome, que o
vento continua a escarnecer de nós.

Rebenta, oh desgraciosa hetera, oh fera
descarnada, fendeste com teus punhos
a imaculada esfera que contém o instante
quando o instante pára, e o sangue jorra
das veias terrenas, das veias profanas,
é o desfalecente trotear de um pégaso,
quando, sem que saibas, os cascos deixam
de tocar o chão e já então encavalado
voejas sobre as pradarias. Rebenta, megera,
que o teu negaceio fere a prestimosa célula,
e o teu enxame obnubila o lume, ou será
o cardume de vespas bipartidas, é costume
destes sítios recobrir de estrume o nome da
morte, para que ninguém a veja, para que
ninguém a saiba exercitante e hábil
e sobretudo para que ninguém saia por aí a
indagar seus pares o que é que entendem
por morte, mas como, se dela não há tanto
o que entender, há mais que suportar o
olhar expectante que ela nos dirige,
como se a dizer “sois todos meus”.

Pois rebenta, oh delgadeza do instante,
que em ti o gesto e a delicadeza são um e o mesmo,
e a brandura sem a carícia não subsiste,
assim como da morte participa o espanto,
e como não resistes sem teu sestro,
não existe sem o mesmo sestro teu encanto.
Pois rebenta, oh clamor inútil, oh indiferença de
tudo, que depois de partires, as folhas hão de
se agitar da mesma forma sob o vento,
e o mar há de continuar a lançar vagas contra
as rochas mudas, e o sol há de espalhar
sobre o gramado a mesma luz, e até mesmo
aqueles que conheceste e amaste hão de voltar
às suas vidas e amarão novamente, sendo
tu apenas uma lembrança pálida arquivada
nos alçapões da memória. E quando estes
que conheceste e amaste partirem por sua vez,
e até mesmo em tua lápide não se puder
ler teu nome, e as gerações se seguirem,
quando todo e qualquer traço que deixaste
no mundo for apagado, quando não restar
nem mesmo o mínimo resquício do que foste,
aí então será a morte radical e completa,
o cáustico aniquilamento do teu nome e do teu ser,
a erradicação de qualquer vestígio teu,
aí sim terás morrido inteiramente,
aí sim sim estarás profunda e irremediavelmente
morto.

Rebenta, oh esfaimada partição de um
áster, fundação das levas alquebradas
de argonautas, que na extrema-unção
hás tu de recolher o derramado éter,
que mesmo no silêncio a morte indaga,
que mesmo nas alturas crísticas do nada
hei eu de forcejar a entrada no famigerado
reino, o estéril continente de onde nenhum
vulto volta a emergir, que uma vez teus
olhos submersos, que uma vez dilacerado
o verso e o anverso dos teus ornamentos,
que uma vez desenfeixado o texto, a tessitura,
o cordame o elo, o feixe, a contextura,
jamais hão de novamente enfeixar-se,
que no dia em que solene tu partires, parto
eu em teu encalço, vasculho a rosa dos ventos
em busca de um vestígio teu ou do teu rastro,
exumo o teu fenecente cadáver e arranco
de um mar de andrajos, trastes, flores mortas
o teu corpo desmaiado – oh canção, oh severa
degeneração do teu invólucro, oh maldita
desintegração do que um dia foste e
já não és.

III

Que venha pois a morte enquanto a tarde,
enquanto o talho ainda arde, o corte
irrecorrível que ela abre em nós,
abre em vós, enquanto a parte mais macia
ainda recrudesce, a simpatia com que
hei eu de receber-te, quando esquálida
aproximar-te, que venha pois a morte
maiúscula arrebentar o que restar
de mim, quando já não houver cura
e a cesura for irrevocável, venha,
vem enquanto ainda estiver quente
a cozedura e luzir ainda a vida,
que para morrer basta estar vivo,
é o que se diz, mas quantos são os que
já mortos logram ainda morrer novamente.
Pois que venha a morte de penachos, arcabuzes,
que venha de taileur, se dama for, ou se for varão
que venha nu, permita Deus, e que traga já
a gadanha em riste, e que não venha triste,
mas que traga chistes, cançonetas, que venha
com sorrisos, piscadelas, para que me encontre
a hora extrema em meio ao mais gozado
flerte, não seria isso divertido, mas talvez
seja pedir demais de quem ainda por aí
tão atarefada. Em todo caso, que venha
ao menos com alguma flor no bolso da
mortalha, onde é que já se viu mortalha
com bolso, que venha então com a dita flor
segura pelos dentes, mas que venha excelsa,
como soem ser as altas entidades, excelentes
no que fazem, e competentíssimas.
Que venha pois a morte paramentada de
turbantes, cachecóis, que venha com seus atavios
recolher de mim o que já desataviado for,
que venha aromática, de menta e alcaçuz,
e que espalhe pelos vãos seus mortuórios ares,
que venha em andar pausado, e que uma fanfarra
surda lhe prenuncie a entrada, que venha
lenta, dadivosa, que se aproxime do meu
catre como se aproxima um velho cão,
e que arrebate meu silente coração com seus
dedos esponjosos, que acoberte meu descrente
coração com o inconsútil canto de suas muitas
e variadas melopeias, que venha terna e elástica,
quem sabe ao crepúsculo, e que me encontre
sereno a meditar num canto sem mover um
músculo que seja, a não ser aquele já mencionado,
do meu jacente coração de carne. Que venha
pois a morte, é vão que continuemos assim a
evocá-la, pois virá mesmo que não a evoquemos,
mas talvez, evocada, venha mais lânguida,
mais amaciada, não seja aquela dura cesura
que de supetão nos rompe as ligaduras e nos
enegrece a vista, mas que talvez, comovida pela
doçura do evocativo canto, venha embaciada,
translúcida, e gradativa nos extingua o lume,
de modo que nos seja doce a agonia e vagaroso
o ultrapassar dos umbrais.

IV

(Canção de maldizer a morte)

Vem, alada prostituta, vaca amortalhada
de três chifres, vem com teus corcéis, teus
desatinos, vem cadela consagrada consumir
o fogo que restar de mim, vem caolha,
megera, vem camélia pútrida arrancar
de mim enfim o último estertor, vem maldita,
desgraçada fera, vem com a gadanha
cega e serrilhada com que decepas a
vida, vem maltrapilha e desgrenhada
macular co´a tua imunda foice o frágil
território que teimo em defender com as garras,
mas em vão, que a tua sombra virulenta
há de extinguir a réstia de uma obstinada
flama que teimo em proteger com as mãos,
mas vem, puta desalmada, que com todos te
deitas, mas nenhum dos teus clientes logra despertar,
vem sonsa, insidiosa, pestilenta besta,
com teus cascos bipartidos, com teu rabo de
pantera, com teus olhos mortos e vazios,
vem vagabunda esquálida arregaçar o que
restar de mim, essa canção de maldizer,
confessemos, é só um hino de louvor
bem disfarçado, pois que no fundo te louvamos,
oh diaba encalacrada, além disso é de conhecimento
geral que ódio é tão somente amor tornado putrefato
pelo veneno da mágoa. Donde se conclui que a
vadia desdentada contra a qual até aqui viemos
lançando os piores insultos é no fundo por nós
adorada, que a leitoa desbeiçada sobre a qual
até aqui viemos fustigando com a farpa pontiaguda
do nosso verbo não merece tamanhos impropérios,
fiquemos cientes de que a velha depravada
que hoje maldizemos, amanhã há de nos acolher
em seus braços, e será tarefa nossa suportar
o seu bafo pestilento, portanto deixemos de
injuriar nossa futura concubina e nos conformemos
em aceitar, com heroica ou estoica resistência,
a antevisão de seus beijos pegajosos,
seus seios emurchecidos, seus pelos encravados,
assim como as inevitáveis pelancas que lhe
adornam o dorso, o ventre, as nádegas e as pernas.

V

Ônix, de onde ostentas, lúbrico, o sílex,
o silêncio, o túrgido redespertar de
um antúrio, que do lodo recolheste
o brilho, do estofo carnoso o índex
de mais e mais contendas, que do jorro
alvissareiro brota o látex de mais-silêncio,
e escuro o continente imerge sob
a pedraria, sem que o espasmo,
o astro de cansaço que ontem entreviste,
a haste transformada em susto,
rebrilhas pelos escarcéus feito um
murmúrio, que do lado mais exposto
trovejas a ira e as tuas mãos no barro
remarcam a trilha, a armadilha em que
tu mesmo te enfiaste, a inominável ilha
em que te encontras condenado ao
ostracismo eterno.

Máximo, o trespasse de um extenso
batalhão de astros, o exício de um
sátiro, quando o fáustico, se bem que
indolente estásimo logra desenfastiar
o público, e a catástrofe coincide
com a anagnósis. Sísmico, o desandar
de um reticente oráculo, quando
a pitonisa permanece estática,
e os gases que escapam pelas rachadura
do chão, e o líquido negro que desce
aos lençóis d´água, e os arrebóis da
cor da carne, a cor da parte mais
avermelhada do céu. Que a morte,
a espezinhada sorte que nos coube,
a fadiga de tão brevemente enlaçar-te,
para logo mais perder-te, o mais indicado
é que finalizemos logo esse poema,
que a cada passo vai tomando mais estranhos
ares, cansou-se o poeta de versejar
sobre a morte, finalizemos pois antes que
a mesma morte surpreenda o poeta
no meio de um verso, era o que faltava,
um poema incompleto. Pois que agora
mesmo um ligeiro calafrio percorre a
espinha do poeta, falta-lhe o ar,
um leve latejar nas têmporas, não deve ser nada,
deve ser efeito de ficar tanto tempo a
lidar com isso de mortos e morte, vamos
logo ao desfecho, que é o que importa:

“A forração almofadada de um estreito
claustro, vulgo caixão, neste que hão de
vos depôr um dia, após o que cobrir-vos-ão
de crisântemos, de modo que só a vossa
face enrijecida e pálida apareça,
e nas narinas hão de meter o algodão,
para que dali não escorr...




texto e foto | Ygor Raduy