segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Histórias Esquisitas III.






São dois rapazes e um bêbado. Estão na calçada de um bar às cinco da manhã. Os dois têm muito a conversar, mas o bêbado atrapalha, dizendo a cada cinco minutos: “Morei em Londres em 1988 e conheci Frank Zappa”. Um dos rapazes, tentando ignorar o bêbado, fuzila o outro com a questão “O que você entende por trágico?” O outro, atônito, balbucia alguma coisa. O bêbado: “Morei em Londres. Tenho 47 anos. Tudo é antigo para mim”. Os rapazes falam sobre pensamento e linguagem. Um deles propõe a idéia de um pensamento sem linguagem. O outro acha impossível. O bêbado diz: “Morei em Londres. Lá todo mundo anda pelado na rua”.


Flúvia não é lá uma garota muito inteligente. Na aula de ciências, não consegue entender o que siginifica “DNA”. Damasceno, seu colega de turma, lhe diz: “Flúvia, deixe-me ver sua vulva”. Ela sorri. Não sabe o que significa “vulva”. A ignorância de Flúvia é de uma doçura tamanha que sinto vontade de apertá-la. Uma vez, a professora pediu que ela escrevesse na lousa a palavra “paralelepípedo”. Desorientada, ela rabiscou alguns garranchos. Não fazia idéia de como escrever uma palavra tão complicada.
 


Ovaristo gosta de música. Ele diz na padaria: “Nunca ouvi nada melhor do que a “Sinfonia Concertante” de Mozart”. O padeiro Olívio replica: “Prefiro Brahms. Mozart é repetitivo”. Furibundo, Ovaristo ataca: “Mozart repetitivo? Nunca ouvi maior asneira na vida!” Os fregueses interrompem a refeição.  Silêncio. Olívio tenta remediar: “Não leve a mal, Ovaristo. Cada um...” Ovaristo, afogueado, interrompe: “Nunca mais dirija a palavra a mim, seu velho sujo!” Os fregueses, temerosos, baixam a cabeça: não ousam olhar para o exaltado. Ele deixa a padaria aos trancos, como se houvessem maltratado o que, de tudo no mundo, merecia mais cuidado. Ferido pelo padeiro, ele tenta respirar, mas a rua é um emaranhado de metal e concreto onde todos pensam mal de Mozart. “Eles trocam Mozart por Ivete Sangalo.”  - pensa Ovaristo, enojado.


Chove de madrugada. Dois amigos bebem.  Felizes, porque enfim estão juntos no balcão do bar. A alegria de um é a alegria do outro. Eles se bastam. E ali  conversam, usufruem, fumam. Em cada  palavra que trocam reponta a alegria que lhes provoca a presença do outro. Quando um deles começa a contar sobre uma conversa que teve ao telefone com o pai, o outro aguça os ouvidos. Estão bêbados, comovidos. Trêmulos. Partilham cachaça, cerveja, cigarros. Saem do bar e se abrigam numa marquise. Um deles diz: “Que bonita a chuva”. O outro não responde. São dois amigos.


Sobrônio vai ao concerto sozinho, pois não gosta que o incomodem quando escuta música. Uma vez, convidou a amiga Silícia. “Vamos ao teatro? Vão tocar os três Razumovsky de Beethoven.” Ela aceitou, sem saber direito do que se tratava. No início, enquanto os músicos afinavam, ela observou: “Música esquisita. Não tem piano?” Logo no Allegro inicial do primeiro quarteto, ela indaga ao amigo: “Ninguém vai cantar?”. Sobrônio tenta ser gentil: “Não, querida. É um quarteto de cordas. Ouça como é bonito.” Ela logo começou a bocejar. Sobrônio se contorce: “É uma ignorante. Jamais deveria tê-la convidado.“ Durante o Andante com moto do terceiro quarteto – que Sobrônio amava – ela inicia uma longa narração, ao pé do ouvido dele, sobre os problemas conjugais de sua irmã Govinda. “Ele bebe muito. Chega em casa tarde. Acho que está  tendo um caso.” Quando os aplausos explodem, ao fim do Allegro molto, ela ainda fala. “Govinda é tão ingênua. Mas eu não sou boba. Sei que aquele marido dela não presta.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Histórias Esquisitas II.






Perciválio tem moedas. Ele guarda suas moedas num cofrinho de pinguim. Ao fim do dia, quando chega em casa, Perciválio diz, com certo orgulho, “Essas são as moedas que ganhei hoje”, e logo deposita todas no cofrinho. Tudo corre bem para Perciváio. Há, entretanto, algo que incomoda. Com o tempo, as moedas que ele ganha hoje se misturam às que ele ganhou ontem, que se confudem com as que ele ganhou anteontem que, por sua vez, unem-se às que ele ganhou na semana passada. As coisas ficam confusas. Perciválio senta-se. Pensa numa solução. “Posso comprar mais cofrinhos. Em cada um deles, insiro somente as moedas do dia, de forma que elas não se misturem com as outras”. Talvez seja uma boa idéia.


***

 
Algo acontece na casa de Matilda. Seu marido recusa-se a tomar o café da manhã. Matilda vaga pela cozinha. O marido não toca no omelete que ela preparou. “Beba ao menos o suco de tamarindo, querido”. Ele não responde. Sentado à mesa, oberva que grãos de tamarindo descem e formam no fundo do copo uma camada de sedimento. No jardim, o cão Januário late de alegria. Ele acaba de desenterrar o osso que reservou para o desjejum.



***


Hermínio gosta de rapazes, mas não admite. Segundo ele, os gays sofrem de falta de testosterona. Uma simples injeção pode resolver o caso. Se um gay tomar uma injeçãozona de testosterona, vira hetero na hora e pára de viadagem. Essa é a teoria de Hermínio.



***

 
Meu nome é Roscóvio. Sou cobrador de ônibus. Tenho quarenta e cinco anos. Gosto de passear pela cidade na cadeirinha alta. As pessoas do ônibus ficam em assentos mais baixos, de forma que tenho um bom ângulo para observá-las. Mas prefiro ver a cidade. As pessoas fazem barulho, riem alto. Não suporto. Uma mulher diz à outra: “Hoje tem forró. Vamos?”. A outra responde: “Estou sem dinheiro”. Uma mãe diz ao filho: “Geraldino, fique quieto, diabo!” Não sei como a mulher pôde chamar o filho de diabo. Não é coisa que se diga a uma criança.


 ***

 
Era meia-noite, e as pessoas iam chegando para a cerimônia. Logo, todos estavam presentes. Menos Odete. Eles pensavam consigo: “Onde Odete se meteu?” Quando deu meia-noite e meia, D. Urbana, a anfitriã, começou a ficar nervosa. Odete nunca havia se atrasado. Mas nisso,  Odete irrompe na sala, uma diaba. Vinha desalinhada, babando doida, cabelos em fúria, vidrada: “Que soem os tambores!”, ela berrou, já inaugurando a dança, rasgando com um só puxão a blusinha de tafetá, expondo tetas, girando pela casa, derrubando os móveis, bolinando os convidados, convidando todos para a vida. Um estremecmento de ódio percorreu a sala.  Ou era prazer? A cerimônia havia começado.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Histórias Esquisitas.





Há um homem chamado Lústides. Um homem qualquer. Seu corpo é feito de arcos e cilindros. Ás seis horas da tarde, Lústides lustra seus cascos com goma-laca. Sua namorada é uma lagosta, e agita suas antenas quando Lústides a bolina com as mãos arcadas. Formam um casal difuso. Quando ele dorme, ela regurgita pedaços de rocha. Quando ela cozinha, ele lubrifica seus ligamentos com óleo mineral. Riem um do outro, à noite, e piscam repetidas vezes. Se ela bebe um pouco de leite, suas ancas incham, suas brânquias latejam, ela avança para Lústides como se fosse devorá-lo.  Mas é apenas uma demonstração de carinho.
***


Uma mulher entra numa loja e pede ao atendente: “- Seis quilos de tubarão, por favor.” É Dona Especiosa, e compra tubarão para seu bode expiatório, ou seja, seu pássaro com patas. O pássaro foi apelidado de Melônicos. Ao chegar em casa, Especiosa agarra Melônicos e o arrasta à casa das máquinas. Lá, ela alimenta o bode com tiras de tubarão fresco. Ao lado de Melônicos, ergue-se uma fileira de patos empalhados. Especiosa diz: “Depois que você comer, vamos à União Soviética.” Lá fora, a tarde é pálida. Estão vazias as casas. Especiosa usa vestido decotado.
*** 


O dia está no ponto. Jorvânio prepara uma dose de whisky e vai à biblioteca. É um ambiente refinado. No relógio de parede, a hora é remota. No momento em que o líquido toca o esôfago, Jorvânio fecha os olhos e aproveita o prazer da bebida. Jorvânio é belo, embora não saiba disso. Ninguém sabe. Seu peito é dividido em dois por uma fenda, assim como suas costas. Derramado na poltrona, Jorvânio começa a fundir-se com o recinto. Bolhas de whisky em osmose. A fenda anterior revela o interior de Jorvânio. Seu coração é um minério. Ele pensa consigo: “Vou tomar outra dose”.
*** 


Gertrúvia tem mutas amigas. Uma delas é Constália, que a visita todas as manhãs para um passeio. A amiga diz: “Mas que dia agradável, não é mesmo querida?” Gertrúvia responde com um assovio. Ambas são otorrinolaringologistas. Um dos pacientes de Constália possui poderes paranormais. Durante uma consulta, ele levitou durante três segundos. A verdade é que Gertrúvia e Constália são a mesma pessoa. Elas escondem esse fato vestindo-se e portando-se de modo diferente uma da outra. Enquanto Gertrúvia gosta de endívias, Constália prefere labirintite. Enquanto Constália usa colares sobrepostos, Gertrúvia anda de roda gigante. Um dia, quando passeavam juntas, sentaram-se num banco de praça. Uma olhou para outra. Não disseram uma palavra.

***


Hoje é dia de leituras. Gosmando vai à estante e escolhe um livro. Nas páginas, pequenas iluminuras chamam a atenção do rapaz. Numa delas, um sátiro exibe seu pênis avantajado. O livro chama-se “Técnicas de Masturbação para Senhores”. É um best-seller. Gosmando acha o livro complicado. Volta à estante e escolhe um livro germânico. Na capa está escrito “romance de formação”. Mas logo nas primeiras linhas, ele diz para si próprio: “Bater punheta é mais gostoso que ler.” Abandona a leitura e dirige-se à sala de punhetas. Lá, encontra seus amigos e inicia um debate que versa sobre o tema “Masturbação Heterodiegética em Wilhelm Meister” ou “Por que sátiros têm pênis avantajados?”. Ao fim da tertúlia, todos se retiram. Foi proveitoso o dia de leituras.

domingo, 12 de setembro de 2010

O Amor Inteiro.







Não partas com teu reflexo/
Deixa-o espelhado em meu peito.
F. GARCIA LORCA 


Amo-te inteiro, com corpo, alma, ligamentos. Amo-te sem controle, inevitável. Estás em mim, como o sangue flui em mim, corrente. Amo-te inteiro, até as profundezas, e sempre. Amo-te completo e irrevogável – e és a peste em mim adormecida, és o incêndio, a floração de tudo. E só quando estás presente estou presente;  só quando estás alegre estou alegre; só quando respiras eu respiro. Amo-te às pressas, urgente. És o alento e a força – embora de nada desconfies. És a festa onde meus olhos brincam, o abismo onde a minha carne cai. Eu perco o coração, mas vou a ti com alegria. E embora o teu silêncio me aferroe, vou a ti. Vou a ti, embora nada indique que venhas a mim; vou a ti, sem que jamais teu braço se mova em minha direção. Pois amo-te inteiro. E algo em mim insiste que és o único norte – algo em mim resiste e diz: “ama-o inteiro, com corpo, alma, ligamentos”. E vou, obedeço, como quem vai ao mundo, já que aos meus olhos és o próprio mundo. Se porventura de existir desistires, tudo desiste, tudo cai, a luz declina, flores murcham, tudo é vulto. E eu não posso perder nem um minuto teu, nem um sorriso teu posso perder, preciso de cada palavra, de cada gesto teu, de cada respiração. Pois amo-te inteiro, até os subterrâneos. E cada minuto sem ti é um minuto perdido. Cada passo, um passo em falso. Se estás ausente, agonizo; se estás presente, gozo. E me perco de mim, e erro e lamento e apago as luzes e choro pelos cantos. Mas se vens, a alma minha em festa, bandeiras hasteadas, coro de vozes exultantes, luz. Pois amo-te inteiro, com o corpo, com a alma, com os ligamentos.

sábado, 11 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Morte do Amor.




Sou eu quem parto ou és tu,
pequeno animal, que te distancias de mim?

É minha obra a morte do amor
ou foste tu que com tuas punhaladas
consumaste o crime?

Parto de ti, sem olhar-te.

Pois na calçada, enquanto conversávamos,
algo dentro de mim enfim consumou-se:
um oceano transformado em pó.

Mas se for pensar em ti, ainda meu coração reclama.
E resisto a ti, como o sol resiste às nuvens depois
de longa tempestade e sobre o chão lança seu primeiro raio.

Se for pensar em ti, ainda uma lágrima hesita:
mas resiste, na borda da pálpebra,
como resisto eu, à beira de tudo, sem teu braço,
despido de tudo, sabendo que és nada,
que o amor foi amor por nada,
que cada palavra de cada poema foi em vão.

Resisto, pois, a tudo  - e já não tenho o teu retrato
exposto, já não sei mais do teu rosto, esqueci como
o teu corpo se move e da angulação do teu torso
e dos vincos ao redor da tua boca quando sorris.

Deixa-me, então, sozinho.

Deixa-me, pois, assim como estou:
os olhos abertos, o pulso acelerado,
o peito repleto de ar e assustado.

Ou deixo-te eu, sem olhar-te,
mesmo querendo olhar-te,
ainda que todo o meu corpo proteste
e a minha alma proteste – deixa-me só,
pois não tenho mais sangue
e o meu coração está crestado,
como um catedral em ruína.

(Mas é manhã - e há um anúncio de ventura
quando uma luz benfazeja, por entre as fendas
e sobre os escombros de argamassa e rocha
 estica a alça amarelada de seu brilho.)

domingo, 29 de agosto de 2010

O Porto Suspenso.






I

Porto suspenso em andaimes
Junto ao mar de ondas encrespadas
Concha aberta, bivalva,
Que revela, dentro, a carne branca,
A matriz da pérola.

Porto com cais de varas fincadas
Areia feita de minério e limalha
Espuma que é o líquido-sêmen
Formador das coisas.

As coisas formadas e palpáveis
Navegam, carne a carne, no mar
E os sargaços bóiam entre chifres
E compridas tubas de metal lanhado.

A cadência das coisas circundantes
É o ritmo de um pulso existente
Como um coração que nesse mar
Lançasse as naus, singrasse ao encontro
Das linhas suspensas sobre o sal
E na arrebentação, abrisse suas coronárias,
Seus vestíbulos.

II

Que as coisas existentes são átomos e nada
E nós mesmos, falantes ou moventes,
Somos nada e átomos – mas singramos, audazes,
Cabeceando no mar dos hemisférios curvos
Abertos os olhos com força e ávidos,
Seguimos com gracejos, festivais, disputas
Como se nada aí nos detivesse ou ofuscasse.

Como se nada nesse mar nos mantivesse
Sob o domínio estrito da terra e das exigências
Da terra, que são muitas e inexoráveis.

Singramos cegos? Cegos ao que nos corrompe
E mudos como as algas dóceis que cobrem
As distâncias, sugadas no vão das correntes.

Somos os dóceis, os que vão e jamais tornam a vir,
Os que engolidos pelas fossas e desmembrados
Pelos cardumes e macerados pela dentição
Dos polvos, das moréias e das anêmonas.


III

Alarde do aracnídeo do peito
Romance das uvas na colheita
Esgarçados os arcos nas colméias
Salpicados os túneis de sangue saboroso e grosso
Partidas as linhas da palma
As mãos plantadas sobre o barro
A alma de espasmos assombrada
E o sangue, saboroso e grosso, desce
E alimenta o ventre e o baixo-ventre
Onde nos consome a fornalha.

E os rios de água barrenta correm
E os brejos, os veios, os canais
Correm mais em direção ao rio
Tão grosso, tão fundo
As rochas postadas ao lado
O sol que é uma rocha suspensa
Sobre os arquipélagos
Sobre os mananciais
Sobre os mangues
E os fios da vida, que são frágeis,
Como nervos finos e azulados
Estão emaranhados no corpo
E o corpo responde ao tempo
E ao tempo sucumbe sem apelo.

Mas nada disso nos concerne ou toca
Pois seguimos como viandantes ao quais
É desconhecido o rumo e o destino da jornada.

Seguimos fagueiros, exibindo penachos,
Empunhando os membros em riste, eréteis,
Como caçadores, orgulhosos da caça valiosa
Ou expedicionários em marcha vigorosa
Em direção ao nada.

(Ofereço aos vermes
Esse corpo retrátil, ofereço aos vermes meus pés
E aos vermes meu sexo desmantelado,
Aos vermes meu peito e a cavidade que o meu
Peito esconde e protege)


IV

A cadência das coisas existentes no tempo
(o corpo, os cães, as árvores, as pedras)
O contínuo aparecer e desaparecer das coisas
Organiza um ritmo secreto, um pulso –
Somos andamento e aparência e espanto
E saltamos, vendados os olhos, as mãos em cruz,
Para o abismo que nos aspira
A máquina do mundo que nos reprocessa.

(Se a carne sucumbe, logo aparece mais carne
E depois disso mais carne que sucumbe e cai,
De um lado a outro, a carne cai e sucumbe, mas nada
Entrava a produção de carne nova que se sobrepõe
E substitui a carne arcaica)

V

Um porto suspenso no mar da lonjura inabitável:
Somos areia e cal e pedrarias, somos alento;
Um porto suspenso na bruma, que mal divisamos
A estatuária de imprecisas formas
E mal sentimos investir na face
O vento salgado que ricocheteia nos muros
E sibila nas frestas do madeirame.

Um porto suspenso é o que somos
Ou somos a neblina que arredonda as coisas
(Somos átomos e nada)
Ou somos lonjura e não sabemos
Ou a noite que recobre tudo
E a tudo acolhe no seu véu.

Um porto suspenso é o que somos
Ou somos a indefinida espera
(e oscilamos entre ser e nada)
E aqui habitamos, no saguão do corpo,
Desconhecidos de nós mesmos
E dos que aqui conosco esperam.

Os corpos brancos, espaçados,
Cada qual em seu invólucro
E sanguinolenta cápsula – aqui pairamos,
Como esfinges inscientes do enigma
Ou como máscaras às quais falta o rosto,
Aqui lidamos com a vida em feixes
E a cada feixe decomposto suspiramos
E a cada suspiro empalidecemos.

Escuta-se ainda a voz de Heráclito
Á beira de todo largo rio, cavernosa,
A relembrar o eterno fluxo do qual
Compartilhamos uma ínfima parte.

E o fogo aceso que em nós arde
É o fogo vivo que ardia antes
E o fogo que arderá depois somos nós –
Vida imaculada pelo tempo,
Luz que nos habita na voragem,
Campo de matizes ou terreno
Ou amurada tomada pela hera:
Somos nós na chuva e nas rajadas
Somos nós nas matas ciliares da margem
Somos nós nas dunas, nas falésias
Somos nós no gelo, nos gêiseres de água fervente,
Nas ilhas do Pacífico espaçadas
Pela amplidão das milhas de viagem.

VI

Abarca, amor, com teus braços, o meu corpo que perece.
Abarca com teus braços brancos os meu corpo
Que a vida finda, amor, e já antevejo o instante
Em que os teus braços serão lava efervescente
E os teus olhos serão nuvens que passeiam
E os teus pés imaculados serão erva
E os meus pés serão a terra onde a erva cresce.

Aperta, amor, contra o meu o teu corpo:
Que o cancro da morte jaz em nós, enraizado.
Aperta com fervor contra meu ventre a tua face,
Reconhece em mim o que há de vivo e de pulsante
Porque num instante, amor, se desprenderão as
Tuas mãos das minhas e o teu calor e o meu calor somados
Serão calor da tarde e o sangue que nos preenche
Há de preencher outras artérias, amor, que não as tuas,
Que não as minhas.

E o brilho que vivifica os teus olhos apagará.
E o cheiro do suor do teu sexo misturar-se-á aos outros cheiros.
E os teus quadris serão desmontados e repousarão.
E a tua febre arrefecerá no início da manhã.
E o formato angular do teu rosto será desfigurado.
E ao fim da tarde repousarão as tuas pernas.
E ao anoitecer a água dos teus olhos vazará.
E na madrugada as folhas do teu coração sucumbirão.

VII

O mundo e as parreiras que habitam o mundo
E as dobras do mundo, untadas com óleo das flores
E as ruas das cidades do mundo cravejadas de pedra
E as torrentes de água e as vertentes
E as turbas violentas do mundo e a confusão toda
Da vida que respira e arde.

E os portos do mundo e as estradas tranversas do mundo
E as planícies e os vales aprazíveis onde voejam
As vespas do mundo e máquina do mundo que não cessa.

Sou teu afluente, teu discípulo,
Almirante em ti contido,
Rumor das tuas fossas,
Interior dos teus flancos,
Ignorante de ti, mas teu servo:
Sou teu sumo, tua sutileza
Sou a alma dos teus cânticos
A água dos teus cântaros
A falange em teus combates
Sou teu centurião, armado,
Permaneço em ti se estou vivo
E amanheço em ti e anoiteço.

Sou um gânglio teu e habito a tua carne
E não te livras de mim senão extirpando
Aquela parte tua mais interna e secreta.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Como uma Asa Pousa.





Quando a tarde vai chegando ao fim,
a noite pousa sobre a cidade como uma capa
pousa sobre o formato arredondado de um corpo.

E as arestas do corpo encapadas,
e os ligamentos do corpo bem untados.

Alguém na janela, caso esteja atento, percebe que
a noite pousa sobre a cidade como uma asa pousa
e em seu voejar produz o vento espaçado em rajadas –
Como pousa a asa de um pássaro – delicada e firme.

E é possível sentir no fim da tarde um augúrio.

Dentro da carne, nas partes macias do corpo,
a noite injeta um novo ingrediente – suas ventosas
premidas sobre as esquadrias da cidade,
o avançar contínuo da penumbra sobre as coisas –
produz nos pomos mais suculentos da carne
um um gosto novo – de terra, ferrugem, erva macerada,
resquícios de outras tardes que refloram,
umbrais reabertos pelo quase-noite,
remotas regiões da alma que emergem,
fogo, clarão de rochas, vulto de ruínas.

A noite pousa – mais espessa – e o horizonte já perplexo,
repleto de  rabiscos,  seus grandes vãos já estriados,
sucumbe aos véus que a noite sobre a cidade vai dispondo.

E fascina, a quem por acaso possa estar atento nessa hora,
 a arte com que a noite toma a cidade sem que
palavra alguma seja dita – pousa em silêncio, alheia,
madrinha, majestade, justamente como pousa a morte –
sem que gesto algum de mão humana seja necessário.

Minutos depois, está pousada, e reina.
Está instalada nos recheios do corpo e fora dele, e ali governa.
Sabe-se potente, e exerce em toda parte sua potência.
A noite suprema – suas altas cercanias, seus costados .

É doce, na cidade enfim coberta pela noite,
sentir que a tarde extinguiu-se.

É de uma doçura quase insuportável
perceber que o corpo está sujeito
ao mesmo mecanismo que extinguiu a tarde
e que instalou sobre todas as coisas a noite.

A carne, macia como a tarde, tão frágil como a tarde,
tão cheia de poros, matéria permeável
à mesma série de desígnios que, de dentro do cerne
da tarde, com a doçura de um manto-pássaro-pousado,
extraiu, de pouco a pouco, a floração da noite.

É da mesma doçura de uma mácula.
É ultrajante, porém doce.

É uma agulha tão fina
cravada com minúcia
na parte mais tenra da carne.

Enfim,
como matrona empossada,
vadia soberana,
a noite estende domínios.

Quem estava na janela, atento,
Volta para dentro da casa,
Acende a lâmpada,
Escolhe uma música,
Faz um telefonema.

Pois então já é fato consumado:
a noite é senhora.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pequenas Vibrações:VIDEO + TEXTO.




Há pequenas vibrações.  Há cristais feitos de vento. Ou nem cristais são, mas apenas vento. São  objetos sutis. Ou nem objetos são, apenas ensaiam uma forma, não chegam a cristalizar-se. Há pequenas ondulações  - quase não se percebe. Mas quando o olho está atento – grãos de energia, películas tão finas – há tesouros que apenas por um breve instante rebrilham. São jóias delicadas, cuja breve existência é quase sempre conduzida em segredo.


Quem testemunhou o faiscar das gotas ao lado dos bujões de gás à tarde quando chovia? Quem soube, durante a chuva,  do mínimo tremor das folhas da planta abandonada nos fundos da garagem? Quem viu a dança das formas que a luz desenhava na água nessa hora? Ninguém viu, ninguém sabe. São pérolas quase imateriais.


Há pequenas vibrações. É preciso se aproximar com cuidado. São esquivas. Com a leveza das coisas que não duram – acontecimentos que ocupam um tempo minúsculo – o ritmo daquilo que é muito provisório. Ser testemunha ali é uma dádiva. É como penetrar num reino interdito, numa terra de surpresas.


Quase-objetos, essas pseudo-formas. Oscilam na fronteira entre o material e o espiritual, o concreto e abstrato,  visível e invisível. São fantasmas da matéria, e reverberam tênues, e o brilho que emanam logo desfalece, a beleza que exibem para sempre extinta.


Uma experiência como essa não é comunicável. As palavras são rudes demais para exprimi-la. Talvez a música, quem sabe uma música extremamente delicada (talvez Chopin ou Debussy) possa dizer alguma coisa sobre o assunto.


quinta-feira, 15 de julho de 2010

O CORPO-CONVOSCO.


Pintura de Silvia Migliari (detalhe).



Vida – como se em alta oceania navegássemos, eu convosco, tu conosco, ele contigo – e nós, como se saltássemos de alta plataforma. Já que a cidade é um vão, untemos um do outro o coração, reergamo-nos sobre a anarquia que a cidade abre. Eu conosco, tu convosco – e com todos: ele, o coração de tudo. Como se postados no topo de um alto edifício resolvêssemos enfim conhecer a aventura da queda. Untemos pois um do outro o torso – eu, tu – vós, que observais tudo alto, pai, facínora, náufrago.


Vida – como se do coração da cidade avistássemos finalmente o formato do mundo, a feição de seus mapas. Eu vou convosco. Tu vais conosco. Vamos todos, parceiros, em marcha duvidosa, vamos trôpegos.  Vê que o teu corpo é um objeto frágil? Vê que o irmão do teu corpo é o meu corpo e que da mesma fonte partilhamos? Pois untemos um do outro as costas com o óleo preto que a cidade espalha, respiremos com vigor a fumaça tóxica de seus automóveis, mergulhemos enfim (eu convosco e vós conosco) na água imunda de seus chafarizes.


Vida, na alegria. Pois se a cidade é o antigo labirinto do mito, rompamos o cordão, viajemos juntos ao redor da noite, mudemos de cor, troquemos de máscara, gastemos nossa juventude já escassa  em empreitadas, aceitemos as duras rajadas. Pois sois vós - ó pai desnaturado – o objeto de todo louvor. E é de ti que a vida  cresce, é do teu fosso que saem as putas, é o teu sexo que espalha o líquido viscoso. Pois trata de logo de untar com teu sêmen as dobras do corpo-convosco, vem conosco, agora, a cidade implora, que venha, que abra tua artéria-mestra e lambuze com teu sangue grosso as saliências da carne-conosco.


Vida – já não é um  corpo limitado em contornos, mas o corpo da cidade entorna um corpo-extenso; já não é tua essa cabeça, é cabeça da cidade, uma cabeça-conosco-interligada, como uma teia de cabeças pisca e emite um turbilhão de códigos. Já não és tu, teu corpo separou-se de ti, teus olhos saltaram e foram massacrados, teus braços geraram andaimes, tuas pernas pilares, teu ânus escapamentos, teus pés formaram bases onde a cidade assenta suas estruturas. Pois estás conosco, estás em nós, já não reconheces a própria face – pois a face que era tua tornou-se face-variada, tuas feições foram borradas, teus traços foram apagados. Vou, pois, contigo (e conosco vem a violência); vem pois, comigo (e conosco vai a alegria). Vem, que na cidade fundiram-se o meu e o teu corpo e  corpo de todos. E já não se sabe mais a qual corpo pertencemos, já que estamos fundidos e não vivemos senão um em busca do outro.

terça-feira, 13 de julho de 2010

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Arte Como Problema.


Escrever como quem executa um gesto  – escrever algo tão simples que mal suporte a palavra. Penso numa meta: escrever algo tão nulo que mal suporte o peso de um tema. Realizo um exercício: escrever sem assunto algum, só pelo prazer de ir conectando uma palavra a outra. Imagino escrever algo imperceptível, como uma pessoa respira e mal percebe que respira. Sem esforço, sem dor, sem vontade alguma de estilo. Escrever sem pretender que o escrito seja lido ou admirado, aliás, escrever sem pretender nada. Produzir algo vazio, feito apenas de palavras, não de pensamentos. Palavras libertas de si mesmas, esquecidas da carga do significado. Mas veja, já se perde meu exercício. Começo a esboçar um tema. Vou tentar de novo, de outro jeito.

Mandala, vastidão, passagem. Reunião de sábios, templo, deus, garagem. Vida líquida, forragem dos pastos, mexilhão, costados de pedra acinzentada, manivelas de feltro. Som que das algas se desprende e vaza pelo mar de sargaços – avisto a ti, pequeno animal, no Triângulo das Bermudas.

Novamente, meu objetivo fracassa. Logo que começo a tentar, vão surgindo, sem que eu queira, minhas obsessões, meus fantasmas começam a falar. Um pensamento (mesmo que vago ou mal delineado) vai se formando atrás do texto, as palavras vão ganhando peso e valor. O tema se insinua, sorrateiro, o sentido se esgueira mesmo que a meta seja escapar dele. Pois o exercício visa ao absoluto nonsense. Mas percebo de forma muito nitida que as palavras repelem o não-sentido. A carga de sentido é tão forte, tão arcaica, que o sentido sabota a pretensa nulidade de si mesmo. Daí, tento concluir: a única possibilidade de experimentar a ausência de sentido é o silêncio. No caso, o  texto sairia assim:







Mas aí em cima não há texto. Não há nem mesmo um sinal de pontuação, porque caso houvesse, já haveria sentido. Como nos "quatro minutos e trinta e três segundos" de John Cage também não há música. Chega-se assim, a uma região limite, onde a arte já não é possível. Pois (eu divago) a arte é o território do sentido, por mais que dele tente dele escapar ou subvertê-lo, fragmentá-lo, minimizá-lo – o que certamente resulta em hermetismo. E para o hermético, não há público, a não ser os próprios artistas, em seu círculo. Pode-se perguntar então: “Mas para quê  fugir do sentido? Qual a razão dessa revolta, dessa rejeição do sentido? Será apenas um capricho, uma afetação vanguardista, um pendor aristocrático, uma vaidade excêntrica, enfim, algo fake, feito apenas para impressionar?” É o caso de muitos artistas. As mostras de arte contemporânea estão cheias de charlatães e de pseudo-arte, com as devidas exceções. A única vantagem disso tudo é que hoje já não se sabe mais o que significa exatamente a palavra “arte”. A arte tornou-se novamente um problema.

E problemas são o alimento do pensamento. Se todos estivessem de acordo sobre a arte, não haveria o que discutir. Mas se há desacordo, confusão, disputa, o pensamento cresce. Na minha experiência como escritor, aprendi que o não-fazer-concessões-ao-sentido é o mesmo que afastar-se do público; quando se tende ao não-sentido ou ao sentido múltiplo, vago, sugerido, não se pode esperar feedback algum – a não ser daqueles que, como artistas, de alguma forma, “entendem” o sentido oculto por trás da aparente vontade de nulidade significativa.

Pois há um sentido oculto ali. Se excluirmos charlatanice e vaidade, há todo um grande emaranhado de razões que justificam a rejeição do sentido ou a sua fragmentação, subversão, afastamento. A força-motriz aí presente, grosso modo, é a rebeldia contra a tirania do sentido herdado e enraizado pela tradição unida à paixão pelo experimento, imprevisto, acaso, ousadia, jogo.

terça-feira, 29 de junho de 2010

domingo, 27 de junho de 2010

Sobre o Amor. - Parte III.


Há uma espécie de amor que, contra a vontade de quem ama, recusa-se a morrer. Ela é rara, mas existe. Faz parte das coisas humanas, é irmão da morte e equivale a uma fonte inesgotável de dor. Outra espécie de amor, menos selvagem, pode ser aniquilada quando o amante constata a indiferença do amado. O amor do qual falo não aceita a morte. Ele persiste no coração do amante, como uma planta que mesmo sem luz e água continua a crescer e mantém seu viço apesar da falta de alimento. Aliás, a razão de seu viço é a própria falta de alimento. Assim, quanto menos alimento recebe, mais exuberante a planta medra, e tinge tudo com uma substância viscosa. Um amor dessa espécie é muito perigoso. Ele subjuga e exige do amante a renúncia a toda alegria, energia, saúde, impulso. A vida do amante torna-se vida-para-o-outro; tudo o que antes lhe interessava perde a cor; tudo o que ele antes prezava como valioso é esquecido. Pois o único valor, para o amante, é a presença. A presença do outro é para ele o valor absoluto, perto do qual todo o resto do mundo torna-se palidez e tédio. 

(Nota: O texto acima nasceu como diálogo ou resposta a um outro texto intitulado "Saída". Ele deve sua pequena existência a estas palavras de Ricardo Dalai, autor do blog "Reticências..." que pode ser acessado aqui ou no menu de blogs logo à direita.)

sábado, 26 de junho de 2010

Sobre o Amor. - Parte II.


Relendo hoje o que escrevi logo abaixo sobre o amor, temi que um possível leitor (se é que há algum) compreendesse a minha "crítica do amor" como fruto de algum ressentimento pessoal. Temi que  meu pensamento sobre o amor fosse tomado como amargor, renúncia, afastamento, vingança. Imaginei um leitor pensando consigo: "Ele não teve uma boa experiência no amor, por isso o deplora. Sua perspectiva não tem valor algum, por trás daquelas palavras há lamento e desejo de vingança". Confesso que, se assim pensasse, o tal leitor não estaria completamente enganado.

Por outro lado, há ali um desejo sincero de compreender o tema, sem deixar, na medida do possível, que o pensamento seja afetado pelo ressentimento. (Porém, considero: o que são nossos pensamentos senão frutos de nossa experiência? É possível exercer um pensar que não seja afetado, de alguma forma, pela vida, pelo corpo, pela experiência empírica? Mas essa é outra questão.)

Assim, buscando esclarecimento, mas me sentindo inábil para tanto, resolvi recorrer às palavras de um exímio pesquisador da alma humana. Ele é  célebre, muito lido, muito comentado, por vezes mal compreendido. E embora a sisudez da palavra "fiósofo" sirva normalmente para designá-lo, eu o considero mais próximo de designações como "artista", "criador", "espírito livre", ou algo que o valha. Depois de dar pauladas severas em várias espécies de amor, o autor refere-se ao "amor sexual". Leiamos:

(...) Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder incondicional tanto sobre sua alma quanto sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável. Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implacável e egoísta dos "conquistadores" e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente , pálido, sem valor, e que ele se acha disposto a fazer qualquer sacrifício, a transtornar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que essa selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como oposto de egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo. (...)

(NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 66).

Amor: egoísmo, cobiça, ânsia de poder, cegueira, sacrifício, perigo para a vida. Acho que não é preciso dizer mais nada.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sobre o Amor.


O amor é o peso do mundo.
Allen Ginsberg


Pensando sobre  “amor”, concluí que não passa de um palavra. Talvez seja, aliás, a mais estranha palavra já inventada. Ela serve para designar algo muito vasto e descontínuo, algo muito vago e misturado. A vida me ensinou que dor e amor são a mesma coisa. A mesma vida me ensinou que ódio e amor são irmãos, estão tão próximos um do outro que é impossível distingui-los. Certa vez, há muitos anos, vivi algo que imaginava ser “amor”. “Pobre filho enfermiço da vida”, como diz Thomas Mann. Aconteceu que esse algo transformou-se abruptamente em dor aguda. De dor aguda,  transformou-se angústia, e de angústia em pânico, e de pânico em quê? Loucura? Doença? Morte? Os ingênuos louvam o amor – como se soubessem do que se trata. Os iludidos. Os cegos. Não sabem, porque não viveram; entoam hinos ao amor porque nunca experimentaram na carne um ferro em brasa. Se tivessem vivido sem reservas o amor completo, incondicional, saberiam que seu objeto de culto equivale a um estar-fora de si mesmo, a um perder-se, a um estraçalhar-se. Não desconfiam os apologistas do amor que “amar” significa renunciar à liberdade, que gozo e amor são um do outro longínquos, que o amor é irmão da guerra e não da paz, que amor e alegria raramente se tocam – mas quando se tocam, se é que se tocam, algo de miraculoso deve acontecer. Eu não sei, porque nunca provei dessa mistura. Os ingênuos me replicarão: “Não, o amor salva, o amor enaltece, o amor reforça a alma”. Eu até os entendo, porque esse discurso está fortemente enraizado na tradição. Mas eu treplico: “O amor é perda, queda, fragmentação, desordem, confusão.” Gosto das palavras “alegria”, “amizade”, “coragem”. Mas não me venham falar de amor, como se soubessem do que se trata. Disso, só sabe quem nele mergulhou e emergiu transtornado, doente de si mesmo, marcado com uma ferida incurável. E esses, não falam: reservam para o amor um silêncio, talvez mesmo um rancor. Para quem fala de amor como se falasse de alegria e saúde, eu reservo o meu desprezo. Pois falam iludidos, e são estridentes, e escrevem hinos tediosos e defendem a eficácia do amor contra as dores da alma. Mas o que sabemos sobre “alma”? E o que sabemos sobre “dor”? São, como o “amor”, apenas palavras. E a linguagem é um instrumento rude, incapaz de penetrar em reinos tão emaranhados. 

O Abraço Humano: teatro + literatura.

 

No video acima, os atores representam o seguinte trecho do conto "Aqueles dois", de Caio Fernando Abreu:

(...) Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde. (...)

TEXTO DE CAIO FERNANDO ABREU.
TRECHO DO CONTO "AQUELES DOIS", QUE CONSTA DO VOLUME MORANGOS MOFADOS, PUBLICADO EM 1982 PELA EDITORA BRASILIENSE E REEDITADO EM 1995 PELA COMPANHIA DAS LETRAS. O CONTO INTEGRAL PODE SER LIDO AQUI

MONTAGEM ENCENADA PELA COMPANHIA DE TEATRO LUNA LUNERA DE BELO HORIZONTE - MG E APRESENTADA EM JUNHO DE 2010 NO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE LONDRINA (FILO).

VIDEO: YGOR RADUY (LONDRINA).

quarta-feira, 23 de junho de 2010

SESSÃO_CEMITÉRIO_01.



Hoje, no fim da tarde, fui fazer fotos no cemitério. Sempre gostei de fazer isso. Uma vez, com essa intenção, pulei o muro do cemitério à noite com um amigo. E hoje, cansado de ficar sentado no computador, resolvi ir ao cemitério fazer fotos. O cemitério é um dos lugares mais atraentes que existe para quem curte fotografar. A abundância de linhas, cores, formas, perspectivas, texturas deixa qualquer olho meio desorientado. Flores, azulejos, manchas, estátuas, lixo, vidros, grades – o olhar se perde no meio de tantos assuntos. Mas as fotos não saíram como eu esperava. Com exceção de algumas poucas, ficaram quadradas, convencionais, cheias de clichês. Pode ser que a exigência implícita de uma espécie de postura respeitosa que o cemitério pede tenha bloqueado uma virtual ousadia da imagem. Lugar de respeito, imagens de respeito, ou seja: imagens ruins, pré-formatadas, sem vigor, sem criatividade. Será que alguma parte de mim se sentiu oprimida por aquilo que o cemitério representa? Nesse caso, teria a seriedade da morte recalcado a dose de alegria e ousadia necessárias a qualquer ato criativo? Não sei a resposta. Mas não vou desistir. Por isso, essa postagem se chama “Sessão Cemitério 1”, justamente porque vou tentar de novo, numa segunda sessão, fazer alguma foto boa no cemitério.

***

Quando voltei pra casa, mostrei as fotos a um amigo. Ele reagiu: “Que coisa macabra!” Eu respondi: “Não acho.” Por que fotos de cemitério têm que ser macabras? Claro, eu sei,  o ser humano tem horror à morte, e qualquer coisa que remeta a ela será “macabra”. Mas, pensando por outra perspectiva, o cemitério é um lugar quase engraçado com suas estatuetas bizarras, interiores ultra-cafonas de mausoléus, flores de plástico, epitáfios absurdos, velas coloridas, grades em formato de anjinho. Alguns diriam: “kitsch”. Eu não digo, porque não sei direito o que é “kitsch”. Por essas coisas, posso até achar o cemitério triste, pesaroso, melancólico, ou coisa que o valha, mas não “macabro”. Enfim, as fotos estão aí, para quem quiser passar o olho.














































































NOITE, CIDADE, MORTE, ALEGRIA: video+leitura.





Cidade, mesas de formato angular, tabelas-mestras, libretos onde se arrisca a vida, fugas ao redor do globo – estendo a minha mão a ti, escapadas ao sul da cidade-majestade. Cidade, os abismos de angústia. Forração, amor, vou a ti, esquema fluorescente de luzes, vou a ti, audaz. Oh majestade tóxica do asfalto, oh calçadas por onde caminhaste, oh lufadas do vento de junho! Sabre, torvelinho, prece – a cidade responde em ideogramas, garatujas, rabiscos. Fósforo, tinta, janelas rolantes, hortaliças. Os abismos onde a majestade-dor-cidade reina, seus vastos territórios. Cavalo de sódio: vou a ti, os olhos cheios de uma substância negra. Mas curvilíneo, vens a mim – e soam os sinos inaudíveis, uma rosa arroxeada no teu peito floresce. Vazantes, barro, fuligem das coisas, armários há muito soterrados – na cidade, teu corpo imantado passeia, teu rosto rígido, tuas mãos arcaicas, teus punhais. A cidade, matrona dos flancos, recita uma prece – filhos, amantes, padroeiro, luxo, umbrais, paixão, esquecimento e morte.

***

E na morte, fervilham os cemitérios, a cidade abriga um turbilhão de vermes, os corpos carcomidos por baixo, o sexo desmantelado, os olhos ocos, os seios reduzidos a uma substância preta. Como gastar-se, foder-se, aniquilar-se. Pelas sombras, nos campos santos, a cidade pratica os exercícios da putrefação. E as galerias, a febre, o aluvião de túneis sobrepostos, os jazigos onde repousam, os trastes. Rainha coroada às pressas, vou a ti, embora nos carcoma o tempo, vou a ti, embora nos espere a tumba, vou a ti, a cidade aspira pelo instante, a terra que nos devora aspira, vou a ti, perplexo, o coração cheio de uma substância pegajosa – na cidade que conta os teus dias, os meus dias, que há de te transportar de novo à terra, que há de me transportar de novo ao pó. Na cidade, consumidos, nadificados – nela estamos  fodidos, finitos. Contudo, respiramos. E expelimos sêmen e ruídos; quando jungidos, expelimos fluidos, alegria, festa. Quando colados um ao outro, encavalados um no outro, produzimos vida.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

terça-feira, 15 de junho de 2010

Entardecer com Cores: Video+Texto.



Acontece de quando em quando, em fins de tarde, que o céu da cidade fique rajado de cores. Eu estava em casa, e cortava em rodelas uma lingüiça calabresa enquanto ouvia os Concertos de Brandenburgo. Ao olhar para a janela, me chamou a atenção a súcia de paletas reunidas, a delicada desordem e o arrojo de tantas cores misturadas. Era estranhamente moderno, espantoso, agressivo.  Era aquele embarafustamento, aquela profusão. No fim, aquele exagero, aquele esbanjamento de beleza sem finalidade que a natureza às vezes teima em fabricar lá com seus meios. É impróprio tomar o céu do entardecer por uma “obra”. Obras são coisas humanas. Mas é inevitável (e divertido, enfim) pensar naquele turbilhão como uma “obra” anônima, bombástica, feita para todos e para ninguém, incrivelmente elaborada em seu mais precioso detalhe e no entanto perfeitamente livre, desarticulada. Não pude deixar de observar ainda que a “obra” era mutante e cada cinco minutos revertia em outra. “Como tudo é grande e portentoso e belo!” – algo em mim dizia. Outro algo em mim, mais sóbrio, alertava: “Não se deixe enganar, foi você mesmo, humano, quem criou a beleza. Essa obra é sua.”  As duas partes não se entenderam lá muito bem. Uma delas dizia: “Como é possível negar que aqui existe algo que pode ser chamado de “belo em si”?” A outra retrucava: “ Mas como pode ser você ingênua e ao mesmo tempo arrogante a ponto de crer que a natureza se importa com seus juízos estéticos!” A noite derramou-se, enfim. E a grande obra sem autor – ou de autor desconhecido – foi encoberta pelas sombras. Nada ficou decidido entre as partes. Mas a uniformidade  que a noite estendeu sobre o que antes era variado e confuso foi capaz de acalmar os ânimos e fazer esquecer um pouco que o mundo é essa coisa colorida e móvel, misturada e doida, exuberante e cruel.