quarta-feira, 30 de junho de 2010

Arte Como Problema.


Escrever como quem executa um gesto  – escrever algo tão simples que mal suporte a palavra. Penso numa meta: escrever algo tão nulo que mal suporte o peso de um tema. Realizo um exercício: escrever sem assunto algum, só pelo prazer de ir conectando uma palavra a outra. Imagino escrever algo imperceptível, como uma pessoa respira e mal percebe que respira. Sem esforço, sem dor, sem vontade alguma de estilo. Escrever sem pretender que o escrito seja lido ou admirado, aliás, escrever sem pretender nada. Produzir algo vazio, feito apenas de palavras, não de pensamentos. Palavras libertas de si mesmas, esquecidas da carga do significado. Mas veja, já se perde meu exercício. Começo a esboçar um tema. Vou tentar de novo, de outro jeito.

Mandala, vastidão, passagem. Reunião de sábios, templo, deus, garagem. Vida líquida, forragem dos pastos, mexilhão, costados de pedra acinzentada, manivelas de feltro. Som que das algas se desprende e vaza pelo mar de sargaços – avisto a ti, pequeno animal, no Triângulo das Bermudas.

Novamente, meu objetivo fracassa. Logo que começo a tentar, vão surgindo, sem que eu queira, minhas obsessões, meus fantasmas começam a falar. Um pensamento (mesmo que vago ou mal delineado) vai se formando atrás do texto, as palavras vão ganhando peso e valor. O tema se insinua, sorrateiro, o sentido se esgueira mesmo que a meta seja escapar dele. Pois o exercício visa ao absoluto nonsense. Mas percebo de forma muito nitida que as palavras repelem o não-sentido. A carga de sentido é tão forte, tão arcaica, que o sentido sabota a pretensa nulidade de si mesmo. Daí, tento concluir: a única possibilidade de experimentar a ausência de sentido é o silêncio. No caso, o  texto sairia assim:







Mas aí em cima não há texto. Não há nem mesmo um sinal de pontuação, porque caso houvesse, já haveria sentido. Como nos "quatro minutos e trinta e três segundos" de John Cage também não há música. Chega-se assim, a uma região limite, onde a arte já não é possível. Pois (eu divago) a arte é o território do sentido, por mais que dele tente dele escapar ou subvertê-lo, fragmentá-lo, minimizá-lo – o que certamente resulta em hermetismo. E para o hermético, não há público, a não ser os próprios artistas, em seu círculo. Pode-se perguntar então: “Mas para quê  fugir do sentido? Qual a razão dessa revolta, dessa rejeição do sentido? Será apenas um capricho, uma afetação vanguardista, um pendor aristocrático, uma vaidade excêntrica, enfim, algo fake, feito apenas para impressionar?” É o caso de muitos artistas. As mostras de arte contemporânea estão cheias de charlatães e de pseudo-arte, com as devidas exceções. A única vantagem disso tudo é que hoje já não se sabe mais o que significa exatamente a palavra “arte”. A arte tornou-se novamente um problema.

E problemas são o alimento do pensamento. Se todos estivessem de acordo sobre a arte, não haveria o que discutir. Mas se há desacordo, confusão, disputa, o pensamento cresce. Na minha experiência como escritor, aprendi que o não-fazer-concessões-ao-sentido é o mesmo que afastar-se do público; quando se tende ao não-sentido ou ao sentido múltiplo, vago, sugerido, não se pode esperar feedback algum – a não ser daqueles que, como artistas, de alguma forma, “entendem” o sentido oculto por trás da aparente vontade de nulidade significativa.

Pois há um sentido oculto ali. Se excluirmos charlatanice e vaidade, há todo um grande emaranhado de razões que justificam a rejeição do sentido ou a sua fragmentação, subversão, afastamento. A força-motriz aí presente, grosso modo, é a rebeldia contra a tirania do sentido herdado e enraizado pela tradição unida à paixão pelo experimento, imprevisto, acaso, ousadia, jogo.

terça-feira, 29 de junho de 2010

domingo, 27 de junho de 2010

Sobre o Amor. - Parte III.


Há uma espécie de amor que, contra a vontade de quem ama, recusa-se a morrer. Ela é rara, mas existe. Faz parte das coisas humanas, é irmão da morte e equivale a uma fonte inesgotável de dor. Outra espécie de amor, menos selvagem, pode ser aniquilada quando o amante constata a indiferença do amado. O amor do qual falo não aceita a morte. Ele persiste no coração do amante, como uma planta que mesmo sem luz e água continua a crescer e mantém seu viço apesar da falta de alimento. Aliás, a razão de seu viço é a própria falta de alimento. Assim, quanto menos alimento recebe, mais exuberante a planta medra, e tinge tudo com uma substância viscosa. Um amor dessa espécie é muito perigoso. Ele subjuga e exige do amante a renúncia a toda alegria, energia, saúde, impulso. A vida do amante torna-se vida-para-o-outro; tudo o que antes lhe interessava perde a cor; tudo o que ele antes prezava como valioso é esquecido. Pois o único valor, para o amante, é a presença. A presença do outro é para ele o valor absoluto, perto do qual todo o resto do mundo torna-se palidez e tédio. 

(Nota: O texto acima nasceu como diálogo ou resposta a um outro texto intitulado "Saída". Ele deve sua pequena existência a estas palavras de Ricardo Dalai, autor do blog "Reticências..." que pode ser acessado aqui ou no menu de blogs logo à direita.)

sábado, 26 de junho de 2010

Sobre o Amor. - Parte II.


Relendo hoje o que escrevi logo abaixo sobre o amor, temi que um possível leitor (se é que há algum) compreendesse a minha "crítica do amor" como fruto de algum ressentimento pessoal. Temi que  meu pensamento sobre o amor fosse tomado como amargor, renúncia, afastamento, vingança. Imaginei um leitor pensando consigo: "Ele não teve uma boa experiência no amor, por isso o deplora. Sua perspectiva não tem valor algum, por trás daquelas palavras há lamento e desejo de vingança". Confesso que, se assim pensasse, o tal leitor não estaria completamente enganado.

Por outro lado, há ali um desejo sincero de compreender o tema, sem deixar, na medida do possível, que o pensamento seja afetado pelo ressentimento. (Porém, considero: o que são nossos pensamentos senão frutos de nossa experiência? É possível exercer um pensar que não seja afetado, de alguma forma, pela vida, pelo corpo, pela experiência empírica? Mas essa é outra questão.)

Assim, buscando esclarecimento, mas me sentindo inábil para tanto, resolvi recorrer às palavras de um exímio pesquisador da alma humana. Ele é  célebre, muito lido, muito comentado, por vezes mal compreendido. E embora a sisudez da palavra "fiósofo" sirva normalmente para designá-lo, eu o considero mais próximo de designações como "artista", "criador", "espírito livre", ou algo que o valha. Depois de dar pauladas severas em várias espécies de amor, o autor refere-se ao "amor sexual". Leiamos:

(...) Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder incondicional tanto sobre sua alma quanto sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável. Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implacável e egoísta dos "conquistadores" e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente , pálido, sem valor, e que ele se acha disposto a fazer qualquer sacrifício, a transtornar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que essa selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como oposto de egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo. (...)

(NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 66).

Amor: egoísmo, cobiça, ânsia de poder, cegueira, sacrifício, perigo para a vida. Acho que não é preciso dizer mais nada.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sobre o Amor.


O amor é o peso do mundo.
Allen Ginsberg


Pensando sobre  “amor”, concluí que não passa de um palavra. Talvez seja, aliás, a mais estranha palavra já inventada. Ela serve para designar algo muito vasto e descontínuo, algo muito vago e misturado. A vida me ensinou que dor e amor são a mesma coisa. A mesma vida me ensinou que ódio e amor são irmãos, estão tão próximos um do outro que é impossível distingui-los. Certa vez, há muitos anos, vivi algo que imaginava ser “amor”. “Pobre filho enfermiço da vida”, como diz Thomas Mann. Aconteceu que esse algo transformou-se abruptamente em dor aguda. De dor aguda,  transformou-se angústia, e de angústia em pânico, e de pânico em quê? Loucura? Doença? Morte? Os ingênuos louvam o amor – como se soubessem do que se trata. Os iludidos. Os cegos. Não sabem, porque não viveram; entoam hinos ao amor porque nunca experimentaram na carne um ferro em brasa. Se tivessem vivido sem reservas o amor completo, incondicional, saberiam que seu objeto de culto equivale a um estar-fora de si mesmo, a um perder-se, a um estraçalhar-se. Não desconfiam os apologistas do amor que “amar” significa renunciar à liberdade, que gozo e amor são um do outro longínquos, que o amor é irmão da guerra e não da paz, que amor e alegria raramente se tocam – mas quando se tocam, se é que se tocam, algo de miraculoso deve acontecer. Eu não sei, porque nunca provei dessa mistura. Os ingênuos me replicarão: “Não, o amor salva, o amor enaltece, o amor reforça a alma”. Eu até os entendo, porque esse discurso está fortemente enraizado na tradição. Mas eu treplico: “O amor é perda, queda, fragmentação, desordem, confusão.” Gosto das palavras “alegria”, “amizade”, “coragem”. Mas não me venham falar de amor, como se soubessem do que se trata. Disso, só sabe quem nele mergulhou e emergiu transtornado, doente de si mesmo, marcado com uma ferida incurável. E esses, não falam: reservam para o amor um silêncio, talvez mesmo um rancor. Para quem fala de amor como se falasse de alegria e saúde, eu reservo o meu desprezo. Pois falam iludidos, e são estridentes, e escrevem hinos tediosos e defendem a eficácia do amor contra as dores da alma. Mas o que sabemos sobre “alma”? E o que sabemos sobre “dor”? São, como o “amor”, apenas palavras. E a linguagem é um instrumento rude, incapaz de penetrar em reinos tão emaranhados. 

O Abraço Humano: teatro + literatura.

 

No video acima, os atores representam o seguinte trecho do conto "Aqueles dois", de Caio Fernando Abreu:

(...) Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde. (...)

TEXTO DE CAIO FERNANDO ABREU.
TRECHO DO CONTO "AQUELES DOIS", QUE CONSTA DO VOLUME MORANGOS MOFADOS, PUBLICADO EM 1982 PELA EDITORA BRASILIENSE E REEDITADO EM 1995 PELA COMPANHIA DAS LETRAS. O CONTO INTEGRAL PODE SER LIDO AQUI

MONTAGEM ENCENADA PELA COMPANHIA DE TEATRO LUNA LUNERA DE BELO HORIZONTE - MG E APRESENTADA EM JUNHO DE 2010 NO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE LONDRINA (FILO).

VIDEO: YGOR RADUY (LONDRINA).

quarta-feira, 23 de junho de 2010

SESSÃO_CEMITÉRIO_01.



Hoje, no fim da tarde, fui fazer fotos no cemitério. Sempre gostei de fazer isso. Uma vez, com essa intenção, pulei o muro do cemitério à noite com um amigo. E hoje, cansado de ficar sentado no computador, resolvi ir ao cemitério fazer fotos. O cemitério é um dos lugares mais atraentes que existe para quem curte fotografar. A abundância de linhas, cores, formas, perspectivas, texturas deixa qualquer olho meio desorientado. Flores, azulejos, manchas, estátuas, lixo, vidros, grades – o olhar se perde no meio de tantos assuntos. Mas as fotos não saíram como eu esperava. Com exceção de algumas poucas, ficaram quadradas, convencionais, cheias de clichês. Pode ser que a exigência implícita de uma espécie de postura respeitosa que o cemitério pede tenha bloqueado uma virtual ousadia da imagem. Lugar de respeito, imagens de respeito, ou seja: imagens ruins, pré-formatadas, sem vigor, sem criatividade. Será que alguma parte de mim se sentiu oprimida por aquilo que o cemitério representa? Nesse caso, teria a seriedade da morte recalcado a dose de alegria e ousadia necessárias a qualquer ato criativo? Não sei a resposta. Mas não vou desistir. Por isso, essa postagem se chama “Sessão Cemitério 1”, justamente porque vou tentar de novo, numa segunda sessão, fazer alguma foto boa no cemitério.

***

Quando voltei pra casa, mostrei as fotos a um amigo. Ele reagiu: “Que coisa macabra!” Eu respondi: “Não acho.” Por que fotos de cemitério têm que ser macabras? Claro, eu sei,  o ser humano tem horror à morte, e qualquer coisa que remeta a ela será “macabra”. Mas, pensando por outra perspectiva, o cemitério é um lugar quase engraçado com suas estatuetas bizarras, interiores ultra-cafonas de mausoléus, flores de plástico, epitáfios absurdos, velas coloridas, grades em formato de anjinho. Alguns diriam: “kitsch”. Eu não digo, porque não sei direito o que é “kitsch”. Por essas coisas, posso até achar o cemitério triste, pesaroso, melancólico, ou coisa que o valha, mas não “macabro”. Enfim, as fotos estão aí, para quem quiser passar o olho.














































































NOITE, CIDADE, MORTE, ALEGRIA: video+leitura.





Cidade, mesas de formato angular, tabelas-mestras, libretos onde se arrisca a vida, fugas ao redor do globo – estendo a minha mão a ti, escapadas ao sul da cidade-majestade. Cidade, os abismos de angústia. Forração, amor, vou a ti, esquema fluorescente de luzes, vou a ti, audaz. Oh majestade tóxica do asfalto, oh calçadas por onde caminhaste, oh lufadas do vento de junho! Sabre, torvelinho, prece – a cidade responde em ideogramas, garatujas, rabiscos. Fósforo, tinta, janelas rolantes, hortaliças. Os abismos onde a majestade-dor-cidade reina, seus vastos territórios. Cavalo de sódio: vou a ti, os olhos cheios de uma substância negra. Mas curvilíneo, vens a mim – e soam os sinos inaudíveis, uma rosa arroxeada no teu peito floresce. Vazantes, barro, fuligem das coisas, armários há muito soterrados – na cidade, teu corpo imantado passeia, teu rosto rígido, tuas mãos arcaicas, teus punhais. A cidade, matrona dos flancos, recita uma prece – filhos, amantes, padroeiro, luxo, umbrais, paixão, esquecimento e morte.

***

E na morte, fervilham os cemitérios, a cidade abriga um turbilhão de vermes, os corpos carcomidos por baixo, o sexo desmantelado, os olhos ocos, os seios reduzidos a uma substância preta. Como gastar-se, foder-se, aniquilar-se. Pelas sombras, nos campos santos, a cidade pratica os exercícios da putrefação. E as galerias, a febre, o aluvião de túneis sobrepostos, os jazigos onde repousam, os trastes. Rainha coroada às pressas, vou a ti, embora nos carcoma o tempo, vou a ti, embora nos espere a tumba, vou a ti, a cidade aspira pelo instante, a terra que nos devora aspira, vou a ti, perplexo, o coração cheio de uma substância pegajosa – na cidade que conta os teus dias, os meus dias, que há de te transportar de novo à terra, que há de me transportar de novo ao pó. Na cidade, consumidos, nadificados – nela estamos  fodidos, finitos. Contudo, respiramos. E expelimos sêmen e ruídos; quando jungidos, expelimos fluidos, alegria, festa. Quando colados um ao outro, encavalados um no outro, produzimos vida.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

terça-feira, 15 de junho de 2010

Entardecer com Cores: Video+Texto.



Acontece de quando em quando, em fins de tarde, que o céu da cidade fique rajado de cores. Eu estava em casa, e cortava em rodelas uma lingüiça calabresa enquanto ouvia os Concertos de Brandenburgo. Ao olhar para a janela, me chamou a atenção a súcia de paletas reunidas, a delicada desordem e o arrojo de tantas cores misturadas. Era estranhamente moderno, espantoso, agressivo.  Era aquele embarafustamento, aquela profusão. No fim, aquele exagero, aquele esbanjamento de beleza sem finalidade que a natureza às vezes teima em fabricar lá com seus meios. É impróprio tomar o céu do entardecer por uma “obra”. Obras são coisas humanas. Mas é inevitável (e divertido, enfim) pensar naquele turbilhão como uma “obra” anônima, bombástica, feita para todos e para ninguém, incrivelmente elaborada em seu mais precioso detalhe e no entanto perfeitamente livre, desarticulada. Não pude deixar de observar ainda que a “obra” era mutante e cada cinco minutos revertia em outra. “Como tudo é grande e portentoso e belo!” – algo em mim dizia. Outro algo em mim, mais sóbrio, alertava: “Não se deixe enganar, foi você mesmo, humano, quem criou a beleza. Essa obra é sua.”  As duas partes não se entenderam lá muito bem. Uma delas dizia: “Como é possível negar que aqui existe algo que pode ser chamado de “belo em si”?” A outra retrucava: “ Mas como pode ser você ingênua e ao mesmo tempo arrogante a ponto de crer que a natureza se importa com seus juízos estéticos!” A noite derramou-se, enfim. E a grande obra sem autor – ou de autor desconhecido – foi encoberta pelas sombras. Nada ficou decidido entre as partes. Mas a uniformidade  que a noite estendeu sobre o que antes era variado e confuso foi capaz de acalmar os ânimos e fazer esquecer um pouco que o mundo é essa coisa colorida e móvel, misturada e doida, exuberante e cruel.


segunda-feira, 14 de junho de 2010

Um Lampião: Vídeo-Leitura.

 


Como um lampião no aberto campo
ilumina à sua volta a escuridão
e sobre a noite funda lança sua força,
limitada, é certo, mas potente -
assim persiste força humana.

Como aquele rude lampião enfrenta o escuro
munido apenas de sua única chama,
assim é a luz humana: perece enquanto brilha,
mas enquanto brilha alimenta a vida
sendo esta mesma vida o que lhe atiça a flama.

Solidão dessa luz encerrada na treva
teu flamejar é o meu próprio coração aceso
e a tua altivez é a minha coragem,
subitamente erguida.

Ah camparias, hinos, amplidões!
O combustível dessa chama é a minha fome
e o comburente sou eu mesmo –
um flanco em carne viva lacerado
um pomo vivo consumido às pressas.

Que o fogo encendido em ti é o meu fogo
e o fogo de tudo: nisso somos um,
nós e o todo, que arde conosco
enquanto eu ardo convosco e ardemos todos,
parceiros de incêndio.

Ah céus da madrugada, ah voragem,
devoração veloz dos corpos estendidos,
maturação da urgência dos frutos.

Ah prontidão imaculada das coisas
efêmero estar-aceso das coisas
seu ofuscante reluzir e seu relampejar.

Tal qual o lampião aceso aceita o vento
e a cada rajada a sua labareda cresce -
assim estamos frente ao refluir do tempo
mais viçosos a cada investida
mais altivos a cada chibatada
a cada tentativa mais brilhantes.

Pois se é o fogo o princípio de tudo
como na trágica Grécia predisse o Obscuro;
pois se em tudo age a mesma e contínua fome
e pela mesma fera tudo é consumido,
lembremos nós de arder enquanto o vento ruge
e de espalhar sobre o negrume nossa luz –
que essa luz finda, o querosene acaba
e à noite arcaica sobrepõe-se o dia glorioso
e sempre novo.

Mas resiste, petulante e radiosa vida
erguidos os seus mastros, suas velas enfunadas,
sem que os desmandos do tempo a desgovernem –
tal qual o lampião resiste, à beira da ramada
e fita com augusta audácia a madrugada.

Madrugada que só lhe devolve o entreabrir de espaços:
o navegar da lua sob a nuvem,
a coronilha do campo macerada,
o relincho agudo dos crioulos
e a algazarra das vozes misturadas dos pássaros.

sábado, 12 de junho de 2010

Ao Redor do Templo.







A cidade é um templo fincado sobre o chão. Sob o chão da cidade ergue-se a obra humana e divina. Na cidade, as vias são sacras, a calçada onde os pedestres correm, o asfalto da Avenida Faria Lima em São Paulo é sagrado. Na praça da Sé, ergue-se o grande aracnídeo. Em Londrina, a festa é sagrada, o dia todo é consagrado ao céu. Em São Paulo, quando anoitece, os passageiros do ônibus adormecem, as bocas sagradas abertas recebem com fervor a brisa tóxica.

***

Ao redor do templo, pessoas estão reunidas. A cidade é um coração de espinhos. A Catedral é uma estrutura pontiaguda. “Cristo está presente” – dizem os passantes. Na procissão, o sacerdote exclama: “Que o coração de Jesus proteja a tua vida!” Ouve-se em toda parte um burburinho. Todos sabem-se profanos. Mas a tarde cai, do coração de Jesus escorre um sangue doce, todos querem beber. Uma mulher diz à outra: “Deus me curou da hérnia”. A outra admira-se com o milagre.

***

O Cristo está em todos, seu corpo é consumido na ceia. Mas as luzes da cidade dizem: “O Cristo deixou a cidade, foi para o deserto”. O ônibus segue pela Faria Lima. Aparece o longo muro de um cemitério. Um passageiro sonolento diz: “Que descansem em paz”. Mas os mortos dizem: “Descansamos no solo sagrado da cidade. Nosso corpo também é consumido”. Um homem descasca um ovo cozido. Na missa, as fiéis sabem de cor os trechos bonitos do Evangelho. “O Senhor é minha luz e minha salvação. A quem temerei?”.

***

Ao redor do templo, na cidade de Londrina, o clima é festivo. Duas mulheres cegas conversam. Uma mulher comprou um pastel. Outra dá de presente à amiga um escapulário com a imagem do padroeiro da cidade, que não é nenhum santo, mas o próprio Sagrado Coração de Jesus. A amiga diz: “Obrigado, irmã”. Segundo elas, a alma é eterna e todos serão julgados no dia do Juízo. Quem for pecador, sofrerá eternamente tormentos lancinantes, inclusive os homossexuais.

***

Na escadaria, as freiras estão reunidas, em atitude respeitosa. O cheiro de espetinho chega até mesmo ao interior da Catedral. Consome-se carne, o corpo sagrado é devorado, o Coração Sagrado é repartido em postas. Uma criança pergunta à avó: “Vó, eu vou pro céu?” Jesus está olhando. A cidade pulsa inteira, como um coração. A procissão segue pela rua, todos querem mordiscar o Coração, se for possível arrancar-lhe um naco. Sob os olhos abertos do Cristo, a grande coroa de espinhos. A cidade foi purificada, a tarde desmaiada é um leito. Cansado da festa, o povo cristão vai se dispersando. Deus está com todos. No centro do templo, Jesus estraçalhado murmura: “Que Deus esteja convosco”. O coro responde: “Ele está no meio de nós”.



quinta-feira, 10 de junho de 2010

domingo, 6 de junho de 2010

As Enjauladas.






ACESSE AQUI O SITE DO PROJETO MULTIGRAPHIAS
ACESSE AQUI A COMUNIDADE DO PROJETO NO ORKUT

Wasser und Licht.


sexta-feira, 4 de junho de 2010

Novo Experimento Sonoro,





Texto: Ygor Raduy
Leitura: Ygor Raduy e Gabriela Canale
Revisão textual: Ísis Fernandes


 



terça-feira, 1 de junho de 2010

Um poema de Federico Garcia Lorca II.



DO
AMOR IMPREVISTO
 
Ninguém compreendia o perfume
da magnólia escura do teu ventre.
Ninguém sabia que matizavas
um colibri de amor entre teus dentes.

Mil corcéis persas sobre a tua fronte,
praça ao luar, dormiam sono leve,
enquanto eu enlaçava quatro noites
tua cintura ardente, oposta à neve.

E teu olhar, entre jasmins e gesso,
era um pálido ramo de sementes.
Eu busquei, para dar-te, por meu peito
as letras de marfim que dizem sempre

Sempre, sempre: jardim de minha angústia,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue em minha boca, tua boca
já sem luz para minha morte à frente.


GARCÍA LORCA, Federico. Sonetos do amor obscuro e Divã do Tamarit. Tradução de Afonso Félix de Sousa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 49.