quinta-feira, 25 de março de 2010

Querências.




São querências. São campos onde se deita, extensões de terra onde se rola e onde se pesquisa a vida. São plagas onde se pode caminhar. Eu vi a tua imagem irisada sobre uma planície. Eu vi meus dias na querência iluminados pela mesma luz. São chapadões onde se permite a festa, autarquias onde se festeja o passamento das coisas. É um batimento pressentido, sob a superfície da terra, um esgar de rochas, de ruínas. São planaltos salpicados de crateras, são grotões esculpidos na pedra, são cavernas onde se fabrica um elixir.


As querências por onde caminhar, contigo, por onde fabricar os usos novos, por onde gotejar em ti um sumo esbranquiçado – a vida que nessas querências aflora, o vento nas folhas de uma porta, são varandas. São urnas. São estrias na pele das placas, carreiros por onde os andarilhos, trilhas de uma arcaica rota, são passagens. A querência para onde encaminho os passos, beleza dessas válvulas congestionadas com sangue, a escuridão dessas trevas, poeira desses pergaminhos.

Chagas, queimadas, fundura dessa terra sem palmeiras, planura dessa várzea – querência esquadrinhada nos mapas, saudade dessa terra. Onde os teus sabiás, onde os teus céus? Querência de águas, tuas fontes são as férteis, sãos vastos teus mananciais. No reabrir dos pagos, no refletir das sangas, das aguadas, querência de valas, pedras soltas, tropeções. Minha terra tem pedreiras duras, terra de nós que não desato, abismos que não cruzo, vossorocas.

Campeia uma querência extraviada, campeia, por detrás dos matagais, um relógio de águas, um núcleo de calor, um pomo. São hastes por onde uma seiva transita, cápsulas onde se armazena a vida. São estepes escavadas sobre o chão, revoada de um pássaro, percursos. As folhas são caducas, a relva é um espaço que se abre, macegas onde conheci teu corpo-novo, remansos onde saciei a fome. A tua querência – remoinho, viragem dessas horas, um giro que descortina a paisagem.


Nas taperas, nas ramadas, querências onde se aglutina um líquido, nos galpões onde se deita – fabricação de um ritmo, um assovio soprado, um uivo, um guincho, nos catres onde se acomoda o corpo. Querência habitada por aves de caça, os bicos recurvos, as garras, as asas aladas. E fricções, clivagens, querência de onde emerge um susto, de repente, por detrás das moitas, coração ao pulos, contração dos flancos, estertores. Teus úberes, teus turnos de agonia, mortalhas sobre ti: querência.

Sempre um corpo nas beiradas do mato, sempre um flanco – que  irrigado em caçadas, rejuntado, torto, o movimento das nádegas. Com névoa sobre a querência, peitoral de um lado, um escudo, sempre um rosto. Nos rumos, sempre um ligamento, sempre um lugar de cavalos que larga na folhagem seu cansaço, sempre um sestro – um gingado, nas querências do resto. Teu aprumo, teu gesto – são os pagos que te cobrem, são as valas que te escondem, é o barro que te amassa, é o barro.

Querência, estrada de cristais, calçamento de brilhos, cortejo de luzes, contínuo retombar de vertentes. Querência, capoeira de raios, morada de luzes, ruído das toras consumidas pelo fogo. Fumaça das postas. Querência são costados, vazantes, ipueiras. Semente das ervas que te cobrem, são os peixes nas tuas locas, é o barro fecundo de ovas, são os poços, os arroios, são as trombas d´água. O corpo, confeito de latência, estirado sobre as tuas saliências, querência, os vales onde o pensamento, liberto de peias, viaja.

Nas ilhargas – querências das chagas, formação. Escuta um chamado por detrás da malha, rompe tu mesmo o tecido de hastes. Cavalga nas escápulas, sumiço dos teus ornamentos, cavalga na válvula. De chuva na querência, quando vem o vento, resumo dessas horas, de vento na querência quando vem o tempo, cavalga. Nos costados, acha a ti mesmo soerguido, busca, a ti mesmo estatelado, querência de cacos, fuça nessa porcaria, enfia o teu tendão, maneja essa tropa enquanto é hora.

Estado de facínoras. Quebranto no chão, querência dessas horas travejadas, querência desse chão que assenta e foge, esse ar que alimenta e escapa – donde pressenti o cheiro dos teus ombros – um potro, um poço, uma porção do teu corpo assim exposta. Poesia de querências revogadas, monumento, prece, transfiguração.

Um comentário:

Tiago Violante disse...

Sem dúvida uma obra de arte!

Poderíamos julgar a qualidade de um poeta pela força com que subjuga nossa vida? Talvez subjugar não seja o verbo mais adequado. Talvez reorganizar o seja. O mesmo mundo sendo experimentado como jamais: eis os efeitos da poesia. Não esqueçamos que tanto mais forte é o poeta quanto mais pobre for seu leitor. A minha pobreza decide a sua grandeza, e vice versa.

Aproveite seu talento...