segunda-feira, 22 de março de 2010

Opus Magnum.





Acontece de quando em quando, em fins de tarde, que o céu da cidade fique rajado de cores. Eu estava em casa, e cortava em rodelas uma lingüiça calabresa enquanto ouvia os Concertos de Brandenburgo. Ao olhar para a janela, me chamou a atenção a súcia de paletas reunidas, a delicada desordem e o arrojo de tantas cores misturadas. Era estranhamente moderno, espantoso, agressivo.  Era aquele embarafustamento, aquela profusão. No fim, aquele exagero, aquele esbanjamento de beleza sem finalidade que a natureza às vezes teima em fabricar lá com seus meios. É impróprio tomar o céu do entardecer por uma “obra”. Obras são coisas humanas. Mas é inevitável (e divertido, enfim) pensar naquele turbilhão como uma “obra” anônima, bombástica, feita para todos e para ninguém, incrivelmente elaborada em seu mais precioso detalhe e no entanto perfeitamente livre, desarticulada. Não pude deixar de observar ainda que a “obra” era mutante e cada cinco minutos revertia em outra. “Como tudo é grande e portentoso e belo!” – algo em mim dizia. Outro algo em mim, mais sóbrio, alertava: “Não se deixe enganar, foi você mesmo, humano, quem criou a beleza. Essa obra é sua.”  As duas partes não se entenderam lá muito bem. Uma delas dizia: “Como é possível negar que aqui existe algo que pode ser chamado de “belo em si”?” A outra retrucava: “ Mas como pode ser você ingênua e ao mesmo tempo arrogante a ponto de crer que a natureza se importa com seus juízos estéticos!” A noite derramou-se, enfim. E a grande obra sem autor – ou de autor desconhecido – foi encoberta pelas sombras. Nada ficou decidido entre as partes. Mas a uniformidade  que a noite estendeu sobre o que antes era variado e confuso foi capaz de acalmar os ânimos e fazer esquecer um pouco que o mundo é essa coisa colorida e móvel, misturada e doida, exuberante e cruel.

2 comentários:

Tiago Violante disse...

Bravo!

Bela descrição de um conflito...

Parece-me que o significado vem ao mundo através da realidade humana. Mas como ausentar o mundo de sua própria significação? É preciso um suporte real e um centro (inter)subjetivo de referência.

Da perspectiva que me coloco, o real não passa de uma massa bruta sem qualquer finalidade "em si". Esta finalidade vem ao real por meio do humano, e não passa de estrutura subjetiva-objetiva. Mas não ao modo de duas substância separadas e incomunicáveis. A realidade humana não passa dessa "confusão" entre possíveis fins no mundo: é a forma no conteúdo, o conteúdo na forma.

A questão que me coloco é sobre a herança desses fins: como é possível minha singularidade ser determinada por singularidades históricas? Sob quais condições me torno aquilo que fizeram de mim? O que há de estrutural em mim que permite essa herança? O que há em mim que permite se livrar dela?


Grande abraço e obrigado pelo texto.

Terry Di Terry disse...

Belíssimo!