No
video acima, os atores representam o seguinte trecho do conto "Aqueles
dois", de Caio Fernando Abreu:
(...)
Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o
que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham
tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem,
abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do
outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de
barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul,
que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não
diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe.
Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro
era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se,
então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no
mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para
sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e
apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados
de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição
na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas
desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos
Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê,
começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e
abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul,
mas não tinha fichas e era muito tarde. (...)
TEXTO
DE CAIO FERNANDO ABREU.
TRECHO
DO CONTO "AQUELES DOIS", QUE CONSTA DO VOLUME MORANGOS MOFADOS,
PUBLICADO EM 1982 PELA EDITORA BRASILIENSE E REEDITADO EM 1995 PELA
COMPANHIA DAS LETRAS. O CONTO INTEGRAL PODE SER LIDO AQUI.
MONTAGEM
ENCENADA PELA COMPANHIA DE TEATRO LUNA LUNERA DE BELO HORIZONTE - MG E
APRESENTADA EM JUNHO DE 2010 NO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE
LONDRINA (FILO).
VIDEO:
YGOR RADUY (LONDRINA).
Um comentário:
"Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde."
Tarde demais...
isso adquire um poder semântico tão grande...
Era muito tarde, ou tarde demais, quando na verdade ainda é cedo demais. Cedo demais para tudo, inclusive para a vida.
E para o amor...
Enfim... divagações de um "caiano"... rs
ótimo trecho.
confesso que chorei quando vi a peça.
até!
abraço
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