Acontece de quando em
quando, em fins de tarde, que o céu da cidade fique rajado de cores. Eu
estava em casa, e cortava em rodelas uma lingüiça calabresa enquanto
ouvia os Concertos de Brandenburgo. Ao olhar para a janela, me chamou a
atenção a súcia de paletas reunidas, a delicada desordem e o arrojo de
tantas cores misturadas. Era estranhamente moderno, espantoso,
agressivo. Era aquele embarafustamento, aquela profusão. No fim, aquele
exagero, aquele esbanjamento de beleza sem finalidade que a natureza às
vezes teima em fabricar lá com seus meios. É impróprio tomar o céu do
entardecer por uma “obra”. Obras são coisas humanas. Mas é inevitável (e
divertido, enfim) pensar naquele turbilhão como uma “obra” anônima,
bombástica, feita para todos e para ninguém, incrivelmente elaborada em
seu mais precioso detalhe e no entanto perfeitamente livre,
desarticulada. Não pude deixar de observar ainda que a “obra” era
mutante e cada cinco minutos revertia em outra. “Como tudo é grande e
portentoso e belo!” – algo em mim dizia. Outro algo em mim, mais sóbrio,
alertava: “Não se deixe enganar, foi você mesmo, humano, quem criou a
beleza. Essa obra é sua.” As duas partes não se entenderam lá muito
bem. Uma delas dizia: “Como é possível negar que aqui existe algo que
pode ser chamado de “belo em si”?” A outra retrucava: “ Mas como pode
ser você ingênua e ao mesmo tempo arrogante a ponto de crer que a
natureza se importa com seus juízos estéticos!” A noite derramou-se,
enfim. E a grande obra sem autor – ou de autor desconhecido – foi
encoberta pelas sombras. Nada ficou decidido entre as partes. Mas a
uniformidade que a noite estendeu sobre o que antes era variado e
confuso foi capaz de acalmar os ânimos e fazer esquecer um pouco que o
mundo é essa coisa colorida e móvel, misturada e doida, exuberante e
cruel.
Um comentário:
“Como tudo é grande e portentoso e belo!”
ás vezes eh bom ser menos sóbrio...
...vivamos embriagados de cores.
Abraço!
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