sábado, 12 de junho de 2010

Ao Redor do Templo.







A cidade é um templo fincado sobre o chão. Sob o chão da cidade ergue-se a obra humana e divina. Na cidade, as vias são sacras, a calçada onde os pedestres correm, o asfalto da Avenida Faria Lima em São Paulo é sagrado. Na praça da Sé, ergue-se o grande aracnídeo. Em Londrina, a festa é sagrada, o dia todo é consagrado ao céu. Em São Paulo, quando anoitece, os passageiros do ônibus adormecem, as bocas sagradas abertas recebem com fervor a brisa tóxica.

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Ao redor do templo, pessoas estão reunidas. A cidade é um coração de espinhos. A Catedral é uma estrutura pontiaguda. “Cristo está presente” – dizem os passantes. Na procissão, o sacerdote exclama: “Que o coração de Jesus proteja a tua vida!” Ouve-se em toda parte um burburinho. Todos sabem-se profanos. Mas a tarde cai, do coração de Jesus escorre um sangue doce, todos querem beber. Uma mulher diz à outra: “Deus me curou da hérnia”. A outra admira-se com o milagre.

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O Cristo está em todos, seu corpo é consumido na ceia. Mas as luzes da cidade dizem: “O Cristo deixou a cidade, foi para o deserto”. O ônibus segue pela Faria Lima. Aparece o longo muro de um cemitério. Um passageiro sonolento diz: “Que descansem em paz”. Mas os mortos dizem: “Descansamos no solo sagrado da cidade. Nosso corpo também é consumido”. Um homem descasca um ovo cozido. Na missa, as fiéis sabem de cor os trechos bonitos do Evangelho. “O Senhor é minha luz e minha salvação. A quem temerei?”.

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Ao redor do templo, na cidade de Londrina, o clima é festivo. Duas mulheres cegas conversam. Uma mulher comprou um pastel. Outra dá de presente à amiga um escapulário com a imagem do padroeiro da cidade, que não é nenhum santo, mas o próprio Sagrado Coração de Jesus. A amiga diz: “Obrigado, irmã”. Segundo elas, a alma é eterna e todos serão julgados no dia do Juízo. Quem for pecador, sofrerá eternamente tormentos lancinantes, inclusive os homossexuais.

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Na escadaria, as freiras estão reunidas, em atitude respeitosa. O cheiro de espetinho chega até mesmo ao interior da Catedral. Consome-se carne, o corpo sagrado é devorado, o Coração Sagrado é repartido em postas. Uma criança pergunta à avó: “Vó, eu vou pro céu?” Jesus está olhando. A cidade pulsa inteira, como um coração. A procissão segue pela rua, todos querem mordiscar o Coração, se for possível arrancar-lhe um naco. Sob os olhos abertos do Cristo, a grande coroa de espinhos. A cidade foi purificada, a tarde desmaiada é um leito. Cansado da festa, o povo cristão vai se dispersando. Deus está com todos. No centro do templo, Jesus estraçalhado murmura: “Que Deus esteja convosco”. O coro responde: “Ele está no meio de nós”.



Um comentário:

Ricardo Dalai disse...

A união do popular com o erudito, do cinza com as cores, da imagem e do som...

acho que isso é mística.
E místico é sagrado. Sempre.
Mas isso eu também só acho...

...que Deus perdoe se for blasfêmia.
rs

;)