terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Vida Líquida.





É necessário falar sobre a chuva. De maneira mais urgente, é necessário falar sobre a chuva estival que banha a cidade no meio da tarde, obstruindo o sol com uma fina névoa de gotículas. Eu havia caído no sono, após o almoço. Na cama, eu soçobrava numa região de sonhos agitados. Acordei com o barulho de gotas grossas na janela. Quando me levantei, a alma ainda incrédula, os olhos vagos, percebi que chovia e fazia sol ao mesmo tempo.  Eram camadas e sobrecamadas de água rarefeita e luz refratada – a cidade brilhava, as coisas faíscavam delicadas, assumiam um ar inocente, como se redimidas. Tudo durou menos que um quarto de hora. Uma chuva tão terna, em seus minutos que duraram, fugidios. Logo rebrilhavam seus véus frescos de água sobre os telhados e reanimava o coração de tudo, as coisas saíam fortes , redivivas, os laços reatados. Respirava-se. O ar era fino e deslizava para dentro do peito. Umedecida a tarde, as coisas pousavam suavizadas, reabertas.





É necessário pois que alguém diga algumas palavras sobre a chuva que hoje caiu sobre a cidade. Que durante a parte mais forte da chuva, eu, na janela, vi dois rapazes que passavam. Percebi neles o prazer de caminhar pela chuva sem correr. Como cavalos que no meio do campo, quando chove, continuam a pastar, imperturbados. Comovido, vi que não era sob a chuva que eles caminhavam, mas dentro da chuva, faziam parte dela aqueles dois, aceitavam-na, alegres, como dois potros no campo, e suas passadas eram largas, pausadas. Riam um pro outro, repletos, satisfeitos. Pouco importava que saíssem da aventura um pouco molhados, a pele agradecia, o corpo inteiro aceitava as rajadas. Era bom, e era a vida. Com inveja, estendi meus braços fora da janela para receber, eu também, um pouco daquela água. Quando senti que minhas mãos já estavam molhadas, levei-as à face, ao pescoço. Água-viva: eu também participara um pouco, eu recebera ali o meu quinhão da chuva, eu era um homem refrescado. Durante aquele breve instante eu recolhera, cauteloso, um pedaço da vida e o trouxera até perto da face. A vida, que ali se manifestava em forma de matéria líquida. Foi quando percebi que era preciso escrever. Eu havia sido tocado. Sentei-me então frente ao computador e comecei: "É necessário falar sobre a chuva (...)".








Um comentário:

zero disse...

Ygor, seus textos são sensacionais. "Era bom, e era a vida." Que lindo isso.