quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Vida Sob a Sexta-Feira.


Hoje é noite de sexta-feira. Tudo está suspenso, tudo respira. Eu estava em casa enquanto a sexta-feira transcorria. Presenciei a tarde, o fim da tarde e estava atento quando, dos vãos da sexta-feira, a noite começou a emergir. Acendi um cigarro. Não parecia belo que sombras cautelosas de repente tomassem a sexta-feira de assalto? Não parecia adequado que toda a sexta-feira fosse embebida, primeiro na penumbra, depois na escuridão mais doce? E assim foi. Posso dizer, porque estava alerta. Como uma fruta está alerta e em seu interior guarda células cheias de vida. Eu era um fruto depositado sobre o tampo reluzente da tarde. Uma fruta na sexta-feira é a coisa mais impressionante que existe. Uma maçã, digamos, amarela com rajadas de vermelho – não parece o máximo? Depois de um instante, a noite tudo envolveu com seu traje. Fui até a janela e um vento beduíno soprava. A cidade toda reluzia, os postes eram gemas que piscavam, havia um desfile luxuoso de faróis. E o vento perpassava tudo. Estaquei, paralisado, frente ao espetáculo. Se ao menos alguém estivesse ao meu lado, alguém que pudesse servir de testemunha a tudo o que vi. Mas ninguém estava comigo, pois a sexta-feira estabelecia que somente uma pessoa sozinha pudesse presenciar seus trabalhos. A vida era simples e majestosa. Havia uma grandeza oculta em cada canto. Tudo gozava, silenciosamente. As coisas pulsavam imperceptivelmente, floresciam sem que ninguém as tocasse. Não havia nada que a sexta-feira desconhecesse, nada de estranho ao seu labor. Fechei a janela, cansado de estar como testemunha-única. Era demais aquela exigência. Resolvi sair. Precisava saber se outras pessoas dentro da sexta-feira também estavam vivas. Coloquei uma roupa bonita, dei um jeito no cabelo, passei um perfume. E peguei dinheiro, pois meu objetivo era beber uma cerveja.

E saí para a rua, como quem vai respirar o ar. Os bares estavam cheios de gente. A vida grassava, como eu suspeitara no início. Os rostos eram reluzentes. Os copos, de tão cheios, derramavam. Pedi uma latinha e fiquei observando. Tudo era farto e vivo, não havia miséria. O riso era tão fundo que degringolava em esgar. As meninas usavam maquiagem pesada, eram as mascaradas. Os meninos tinham o peito aberto e usavam bermudas. Uma garçonete estava tão absorta em seu trabalho que mal percebia que era bela. Numa mesa, falava-se sobre religião. Uma mulher de olhos fundos defendia que o cristianismo já existia 300 anos antes de Cristo. Outro rapaz discordava, gritava que era impossível haver cristianismo antes de Cristo. Nada era decidido, mas não importava. O importante era falar, falar, falar, as bocas eram insaciáveis. Suspeitei, por um instante, que falar era uma estratégia para evitar a austeridade que a sexta-feira impunha. Burlar o silêncio da sexta-feira significava falar, mesmo que as palavras não tivessem nenhum sentido.

Saí daquele bar, já não me interessavam palavrórios. Deixei que a sexta-feira decidisse o meu lugar, que tinha que ser um lugar mais sujo. Eu andava numa calçada, ao longo do muro do cemitério. Os carros vinham em direção contrária e me ofuscavam a vista. A Avenida chama-se Doutor João Cândido. Havia sido a minha escolha examinar a sexta-feira a partir de dentro, ao invés de contemplá-la do alto de uma janela do edifício. Mas era uma tarefa difícil. Os carros eram máquinas hostis que avançavam, as ruas eram feitas de pedra empoeirada, os muros eram cobertos de desenhos e mensagens que eu não entendia. A cidade era um caldeirão, eu percebia. A noite era um amontoado de corpos, corpos vivos em genuflexão, corpos mortos em decúbito. Pois eu não ignorava que a meu lado, no cemitério, os mortos eram devorados. Havia uma parte da sexta-feira que dizia: eu sou podridão. Havia outra que dizia: eu sou vida, eu não sou morte.


E a cada passo que eu dava, ao longo do muro do cemitério onde os mortos eram devorados, eu pisava em baratas. Sim, baratas, digo, baratas, quem caminhou por ali sabe bem. Aquele cemitério é um enxame de baratas. Não queria ter entrado nesse assunto tão pútrido. Mas as baratas, naquela hora eu vi, eram o fino da noite. Eu dou toda a razão a Clarice Lispector quando ela diz: “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias.” A sexta-feira, autoritária, exigia que eu reconhecesse a beleza daqueles bichos. Não era fácil, mas apertando os olhos, era possível ver que o casco das baratas brilhava mais que os faróis e mais que as todas as luzes da cidade. Eram os diamantes moventes. Eu estava cheio de asco por ter que palmilhar esse caminho de baratas. Mas a sexta-feira dizia; “-Sê forte!” – e então eu era. A beleza estava ali, pronta, exposta, uma coisa asquerosa, adocicada, o ar que vinha do cemitério exalava o perfume dos corpos. E era doce saber da morte assim, sabendo ao mesmo tempo da beleza. Era doce saber que o putrefato também é uma jóia.

A sexta-feira me dizia que a morte era feita da mesma matéria da vida. Era difícil de acreditar, eu resistia. E desviava instintivamente de cada barata que aparecia no caminho. Mas algo havia se produzido em mim, sem que eu soubesse direito dizer o quê. A sexta-feira seguia seu curso, hierática, senhora de todos os territórios da noite. Eu era apenas um servo, semi-alcoolizado, que desviava das baratas que apareciam. A noite era um traje, tudo vestia, a onipotente. Voltei pra casa, sem nada, as mãos pendendo, o olhar perdido – e já não era sexta-feira: era Sábado.

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